Por Beatriz Pagliarini Bagagli.
A recente publicação de Caroline Lowbridge, “We’re being pressured into sex by some trans women“, pela BBC News, traduzida prontamente pela BBC News Brasil como “As lésbicas acusadas de transfobia por recusarem sexo com mulheres trans” e compartilhada com a mesma velocidade por inúmeros portais de notícias brasileiros como o G1/Globo, Universa/UOL, Terra, Folha de S.Paulo, dentre tantos outros, nos suscita a pensarmos como a mídia do Reino Unido, ou mais especificamente a BBC neste caso, se relaciona com a comunidade trans. Este episódio também nos instiga a pensar se um artigo de uma ativista trans estrangeira seria traduzido e compartilhado pelos maiores portais de notícias brasileiros com a mesma prontidão.
Lowbridge fez uma pesquisa com um grupo de separatistas lésbicas “Get The L Out” (grupo que empunhou cartazes com mensagens dizendo “transativistas apagam as lésbicas” no Pride in London de 2018) e descobriu que 56% das 80 respondentes disseram que se sentem “pressionadas a aceitar uma mulher trans como parceira sexual”. O que surpreende, na verdade, é que apenas 56% das integrantes deste grupo transfóbico, criado exclusivamente com propósitos anti-trans (tirar a letra L da sigla LGBT porque rechaça a inclusão do T), respondeu de acordo com a ideologia do grupo. Traçando uma analogia, é como se entrevistássemos um grupo transfóbico/TERF e encontrássemos apenas 56% dos seus integrantes acreditando que mulheres trans são biologicamente homens.
É risível uma empresa jornalística como a BBC utilizar de dados tão gritantemente enviesados para sustentar a hipótese ou percepção de que mulheres trans estejam coagindo outras mulheres a se relacionarem com elas – e ainda assumir tudo isso como uma questão relevante em termos jornalísticos que justifique uma publicação. O uso desse tipo de pesquisa enviesada vai contra as próprias diretrizes da BBC, que afirmam que não se deve publicar matérias com base em questionários de auto-seleção destinadas a levar o público a acreditar que são mais robustos do que realmente são. Ainda segundo as diretrizes: “se os questionários não têm valor estatístico e parecem ter sido promovidos apenas para gerar atenção para uma causa ou publicação específica, devemos exercer ceticismo real e considerar não usá-los de forma alguma, especialmente quando eles abordam questões sérias ou controversas”.
Diversas lésbicas vieram a público em apoio às mulheres trans, em resposta ao artigo. Elas denunciam a BBC por ampliar uma “campanha transfóbica” de longa data e contribuir para um “pânico moral infundado”. Em poucos dias de publicação, uma carta aberta que pede que a emissora se desculpe pelo artigo já havia sido assinada por mais de 18 mil pessoas. A emissora fez uma matéria sobre a carta, porém, ao invés de se desculpar, a BBC justifica o artigo ao dizer que ele aborda um “tema complexo a partir de diferentes perspectivas e que é difícil avaliar a extensão do problema”.
A BBC tem demonstrado que ao longo dos últimos meses e anos tem assumido progressivamente visões cada vez mais anti-trans e enviesadas pela ideologia TERF. A empresa tem dado visibilidade absolutamente desproporcional a pessoas e grupos que militam ativamente contra os direitos da população trans, como acesso aos banheiros públicos, aos cuidados médicos de saúde relacionados à transição de gênero e à retificação de documentos oficiais de identificação pessoal.
Phaylen Fairchild observou atentamente que a BBC rompeu com os programas de diversidade da organização Stonewall em outubro deste ano em razão de campanhas de pressão da LGB Alliance e da adoção de uma noção distorcida e equivocada de “imparcialidade” sobre questões LGBT (particularmente questões trans…). Em junho de 2020, uma carta aberta de um grupo do Membros do Parlamento (MP) britânico já denunciava a BBC como “institucionalmente transfóbica”, pois, de acordo com a carta, a emissora, ao invés de tratar a comunidade trans como uma “questão de dignidade ou direitos humanos”; sucumbiu à ideia de que poderia enquadrá-la dentro de “uma guerra cultural na qual seus jornalistas anti-trans têm carta branca para atirar nas pessoas trans”.
Em fevereiro de 2020, a BBC deu voz a Graham Linehan, que alegou que o acesso a cuidados de afirmação de gênero para jovens transgêneros menores de idade é como uma “experimentação nazista” e uma forma de “eugenia” pois iria supostamente “erradicar” a população homossexual. Em julho de 2021, a BBC censurou relatos de jovens trans, seus familiares e médicos a respeito dos impactos prejudiciais, como o aumento das ideações suicidas, decorrentes da falta de acesso a cuidados de afirmação de gênero, como os bloqueadores de puberdade. Apesar de oferecer contrapontos durante a entrevista com Linehan, por que a BBC dá voz a esse comentarista transfóbico para início de conversa enquanto silencia as vozes dos próprios jovens trans, familiares e médicos? Em outra ocasião, a forma enviesada e ofensiva com que a BBC tratou as crianças trans como se fossem uma “nova mania”, entrevistando médicos favoráveis a terapias de conversão de identidade de gênero como Kenneth Zucker, já foi denunciada pela Trans Media Watch e pela Growing up Transgender. Inúmeros casos de transfobia da BBC foram citados nesta thread do twitter.
A BBC retrata equivocadamente o LGB Alliance como se fosse simplesmente um grupo “pró-LGB”, ao invés do que ele realmente é: um grupo anti-trans. O LGB Alliance defende coisas como a exclusão da identidade de gênero do escopo de leis que proíbem as terapias de conversão, sob o argumento falacioso e desonesto de que a “transexualidade é a nova cura gay”. Analisei um pouco do discurso do LGB Alliance em artigo chamado “Afirmação de gênero como conversão de sexualidade: pensando a equivocidade nas alterações corporais e transições de gênero“.
A BBC é responsável por disseminar desinformação a respeito da proposta de reforma de lei de identidade de gênero no Reino Unido. As mulheres trans no Reino Unido já podem utilizar espaços segregados por gênero independentemente da retificação de seus documentos. Portanto, a BBC simplesmente propaga desinformação ao validar a crença amplamente difundida na mídia britânica de que a autodeclaração para mudança nos documentos de pessoas trans poderia comprometer de alguma forma a segurança em espaços segregados pelo gênero feminino. Em nenhum lugar do mundo isso aconteceu, seja aqui e na Argentina, seja na Irlanda, vizinha deles.
Segundo Chris Northwood, a representação das questões trans pela BBC (podemos dizer até mesmo da mídia em geral do Reino Unido) não coincide com as reais questões enfrentadas pela comunidade trans:
Embora existam vários documentários [da BBC] que se centram na experiência das pessoas trans, quando se trata de coberturas mais gerais, tem havido uma falta de precisão e autenticidade na representação da vida das pessoas trans. Por exemplo, grande parte da cobertura das questões transgêneras tem se concentrado em áreas relativamente nichadas, como justiça em esportes de elite, debates filosóficos sobre a definição da palavra “mulher” ou destransição. No entanto, a maioria das pesquisas com a comunidade trans mostra que os maiores problemas que afetam essa comunidade são o acesso a cuidados de saúde, apoio à saúde mental e habitação segura. Da mesma forma, dentro da ativa discussão em torno da juventude trans, uma quantidade desproporcional de tempo é gasta falando sobre aqueles que se prejudicam como resultado de diagnósticos errados, sem definir apropriadamente o contexto de quantas vidas jovens foram salvas por meio de intervenção precoce apropriada. Ao focar grande parte do debate em torno das questões trans através das lentes dos argumentos dos ativistas anti-trans, ao invés das vidas autênticas das pessoas trans, a BBC está falhando em seus propósitos públicos.
Em suma, uma visão um pouco mais atenta a respeito do tipo de matéria que a BBC tem privilegiado fazer sobre as questões trans faz cair por terra a sua pretensa “imparcialidade”. Ao contrário, o viés anti-trans que decorre da sua insistência em abordar temas típicos do discurso TERF é cada vez mais evidente.
Leia também: BBC Brasil, a transfobia midiática do Reino Unido e o “cotton ceiling”.
Comentários
Uma resposta para “A BBC e as pessoas trans: entenda porque a emissora sucumbiu à transfobia”
Eu vinha agora mesmo procurar pra ver se você tinha escrito algo sobre esse texto. Ela ainda teve cara de pau de dizer que só conhece um pesquisador na área. Eu posso citar pelo menos 10 pesquisadores que eu conheço pessoalmente, de perto, sendo minha pesquisa na área também, além de uma linha de pesquisa na minha universidade sobre a temática e uma graduação em Gênero. Preguiça, preguiça, preguiça.