A busca por “sofrer menos” invalida uma identidade transfeminina? Discutindo a partir de questões raciais

Discussão entre Laura Venancio de Souza, Beatriz Pagliarini Bagagli, Leona Wolf e Jéssica Milaré a partir da publicação original de Laura Venancio de Souza em seu perfil pessoal.

L.V.S.: Na verdade, essa discussão é bastante interessante. O argumento deles não é necessariamente falso, o problema é o inatismo por trás da motivação em apontar isso, que esconde um essencialismo de gênero que favorece quem? O patriarcado, claro.

Dois pontos:
1) a história de cada pessoa gênero-divergente é única. Não existe um só motivo para TODAS as pessoas trans terem “virado” trans ou todas as bichas terem “virado” bicha. É bem típico de pessoas cis-hetero conservadoras ou transfóbicas pensarem assim, porque essa é a historinha que a cisnorma conta, a de que o gênero de todos é inato e que aquelas que se “desviam” o fazem por um único motivo, quer seja doença, loucura, problemas familiares, etc. Inclusive, vale ressaltar que essa regrinha não exclui os cis-hetero, pois a cisgeneridade e a heterossexualidade deles também se constroem por caminhos diversos na psicossociabilidade de cada um;

2) é irrelevante como a generidade e a sexualidade de alguém se arranjaram, pois o que determina sua legitimidade é o seu caráter concreto, material no mundo. Uma pessoa transfeminina ou amab queer (declarados homens no nascimento que são fora dos padrões de gênero e sexualidade) são legítimas enquanto tal porque existem como tal, vivem como tal e produzem para o mundo como tal.
Ponto final, não é realmente algo assim tão complicado de entender. Isso aí é só uma tentativa muito da relapsa de invalidar algo usando argumentos de uma doutrina de gênero que não se aplicam a nós e, na realidade, não se aplicam a ninguém – por isso tem que ser IMPOSTA COM VIOLÊNCIA, porque é uma merda mesmo.

Não dá pra gente dizer que NENHUMA pessoa queer amab se construiu subjetivamente a partir de uma rejeição do masculino que lhe foi atribuído. Porém, isso não importa, eu não sou menos mulher por isso. Só os cis-hetero, acostumados com o conto de fadas de que sua identidade de gênero é genuína e tão singela como uma flor, é que têm essa ilusão e essa arrogância de achar que o gênero de alguém é menos legítimo por ser oriundo de uma rejeição ao sistema em vez de uma submissão a ele.

B.P.B.: Me chama muita atenção a maneira de encadear o raciocínio: se a sua identidade de gênero feminina é uma maneira de mero “afastamento da figura masculina para sofrer menos”, ela deixa de ser legítima. Me parece uma forma da lógica ou razão instrumental ser usada pra pensar subjetividades, e sempre dá nessas bizarrices culpabilizantes. Se uma pessoa designada homem ao nascer se identificar como mulher é preciso encontrar uma causa escondida, e a busca por essa suposta causa se dá através dessa razão instrumental de que algo tem que ter um objetivo ou sentido. Isto é: a ideia de que as identidades desviantes tem um “motivo” por trás para além do fato das pessoas serem o que são.

Mas assim, eu gostaria de entender como uma pessoa pode achar assim tão facilmente que uma bixa negra pode sofrer menos que um homem negro com performace de gênero padrão. Em que tipo de circunstância? É digno de nota pensar que a partir de uma posição transfeminista podemos pensar essas questões a partir de uma lógica completamente distinta, quer dizer… o fato de você demandar uma identidade transfeminina, seja por qual suposto “motivo” for, o que inclui “sofrer menos”, é um ato legítimo a princípio.

L.V.S: O que é lógica instrumental? Eu não tenho ideia da linha de raciocínio que eles seguem pra falar uma coisa dessas. Talvez seja só aquele tipo de discurso meia-boca construído sob medida para fantasiar a transfobia de argumento sério e bem pensado, bem embasado.

L.W.: Laura Venancio de Souza, é um panafricanismo masculinista que acusa mesmo o feminismo negro de “colonizante”. Reivindicam um retorno a uma a uma cultura essencializada que não existe e dentro de uma análise quantitativa (e não tangencial nem qualitativa) do extermínio de homens negros jovens, fazem um concurso de opressão pra justificar as opressões que executam sobre negras e lgbts. Agora andam opondo raça a gênero.

L.V.S: Bia, deve ser daí que vem a ideia de que home negro sofre mais – porque os números de mortes de homens negros são maiores.

B.P.B: Eu me lembro de ler essa expressão lógica ou razão instrumental de autores que pensam a burocratização e o sistema capitalista. Tem a ver com o pensamento de que as escolhas que tomamos como sujeitos no capitalismo é racional se visar a máxima eficiência e produtividade e assim, lucrar. Então para se tomar uma decisão pensa-se no cálculo entre ganhos e perdas, meios e fins, assim como a mobilização dos instrumentos para atingir os objetivos da melhor forma possível.

Daí isso parece que isso acaba expandindo para outras questões que não apenas as econômicas, mas vai moldando a nossa subjetividade. Perceba que por mais que isso possa fazer algum sentido a princípio, já que se trata da expressão de uma ideologia dominante na nossa época, teríamos na verdade muita dificuldade em prever e calcular todos os cenários possíveis em que ser trans/bixa supostamente nos traria alguma “vantagem” como “sofrer menos” na sociedade e em quais outras circunstâncias, não – além de termos que ponderar que tipo de “vantagem” realmente seria essa para só daí podermos “escolher”. Mesmo assim, vemos tanta gente procurando quais as razões para existirem certas identidades em termos como “o que se ganha com isso; qual o benefício/finalidade de x” de forma extremamente espontânea, como se fosse um questionamento puramente racional. Isso se encontra presente com bastante frequência nos discursos transfóbicos de TERFs, em especial quando mobilizam as teorias sobre autoginefilia, por exemplo.

L.W.: Tem mais coisas sobre transfobia e machismo disfarçado de panafricanismo que tem que ser elaborada. Talvez sobre cavalos de troia. Sobre usar a mascara de um movimento de oprimidos pra reforçar opressões. Esses caras, as rads e os gays anti-queer fazem isso o tempo todo.

L.V.S.: Beatriz Pagliarini, essa forma de pensar a vida de que você fala me parece ser algo bem comum, sobretudo entre homens.

J.M.: Inclusive isso é a negação completa da história dos povos africanos, muitos dos quais respeitavam (alguns ainda respeitam) a diversidade sexual e a diversidade de gênero.
Escrevi sobre isso um tempo atrás: LGBTIs no mundo: África.


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