Texto de Yolanda Arceno.
É bem comum a comparação da narrativa radfem com a narrativa conservadora no que diz respeito a transexualidade. Porém, um aspecto que não costuma ser tratado é como ambas as visões hipersexualizam mulheres trans.
Na perspectiva conservadora, somos ao mesmo tempo demonizadas e objetificadas. Tudo sobre nós ronda em volta da noção de que nossos corpos existem para sexo. Isso tanto é verdade que somos vistas como obscenas quando estamos em público. Somos uma ameaça a crianças não por casos registrados de abuso, mas pela nossa mera presença invocar sexo nas mentes cisgêneras. A mente reacionária acha mais aceitável um casal cishet transando em público que uma mulher trans cuidando da sua vida em público. Somos a depravação encarnada.
A visão do radfem não é muito diferente, ainda que esteja sob jargões feministas e seculares. Somos vistas como homens fetichistas que sentem tesão em se vestir de mulher e performar feminilidade.
A reação, porém, à hipersexualização, é diferente em alguns aspectos. Os conservadores, em especial os homens, nos veem como depravação e uma ameaça a mulheres e crianças. As feministas radicais nos veem como uma ameaça de estupro ambulante, a mulheres e crianças. Aos conservadores somos desviantes, às radfems somos patológicas.
Contudo, a perspectiva radfem vai além na hipersexualização. Nossos corpos são vistos apenas com nojo, sem a adição do desejo reprimido conservador (até onde sei). Quando uma de nós se relaciona com uma mulher cis, a compreensão delas impede ver uma relação saudável. Só podem compreender a relação sob uma ótica de manipulação e chantagem ou outra forma de violência conjugal – a projeção de um medo do estupro.
Enquanto a visão conservadora perpassa a religião, a radfem foca ainda mais na hipersexualização. Essa hipersexualização também só acontece com as mulheres trans que não tem passibilidade ou que deixam claro que são trans, enfrentando a discriminação. Quando apontamos que já dividiram o banheiro com mulheres trans mais de uma vez em suas vidas, sem perceber, são descrentes. Criaram a narrativa de que “sempre dá de saber” e que “sempre tem algo de errado”, e isso é cômico, pois as vezes só notam “algo de errado” depois de saberem. Mas voltando à hipersexualização: no fim do dia elas reforçam muito mais estereótipos sexuais nas mulheres trans (e aparentemente só mulheres trans são fetichistas, homens trans foram cooptados. Duplipensar) que qualquer outro grupo. E isso também as torna uma perfeita massa de manobra para a direita e extrema direita.
Um exemplo é o hoax de “clover-gender” criado na plataforma direitista 4chan. A direita criou o mito de um gênero definido pela atração a crianças, e fez uma divulgação mais ou menos em blogs. Porém o público-alvo da campanha não lhes decepcionou: até o ano passado não era raro encontrar algum post rad falando do absurdo em que chegou o “transativismo”.
Esse exemplo ainda é, por incrível que pareça, algo menor. O 4chan, ainda que uma plataforma dominada pela extrema-direita, funciona mais através de independentes. Existem grupos muito melhor organizados que usam versões muito mais eficazes da mesma tática para dividir a esquerda na luta por direitos trans. E historicamente, o radfem não tem problema algum em se aliar com conservadores.
No fim do dia, são massa de manobra.