Por Lu Hiroshi.
A ilusão da passabilidade
Estive preso na madrugada de sexta, não vou nesse texto relatar os motivos, pois eles não alteram e não acrescentam em nada o que realmente quero relatar.
Estive preso na madrugada de sexta, passei a noite dentro de uma cela com 4 homens cis, 30 minutos antes de ser liberado fui mandando pra uma cela ao lado onde estava uma mulher negra grávida.
Ela disse: “e ae maluco”
E foi a única pessoa a me oferecer água
E o policial gritava dando risada: “isso aí enganou todos nós, mas não tem pistola, é mulher, e aqui é assim, mulher de um lado, homem do outro”
Os homens da cela que eu estava me olhavam curiosos, alguns dando risada, outros entendendo nada, há alguns minutos atrás era só a broderagem
“Cê é louco tio os cara te prenderam por isso não acredito”
Uns minutos depois eu era a grande piada da delegacia, travesti às avessas, como ouvi com os ouvidos assim,
orgulhosos na real deus é travesti como canta uma mina que admiro muito aí.
Há tempos me coçava a história da passabilidade, parecia que a conquista dela, da tal, significava anular boa parte da escrotidão alheia, pô mas é claro, se eu uso um banheiro ninguém nota minha presença, se ando com camiseta apertada não me preocupo com os peitos, se deixo de usar packer não faz diferença porra nenhuma pq ta estampado na minha carinha barbada né?
Não, não é bem assim que funciona.
O grande barato é que a opressão vai vazar e vai atingir em cheio na primeira oportunidade que tiver, na primeira brecha, na primeira “falha” do sistema do binarismo.
Logo quando me reconheci sujeito homi, lidei com uma situação que me exigiram um comportamento esteriotipado do homem cis cavalheiro, e eu não soube corresponder, fui rechaçado em público por causa disso, eu não sabia, eu não fui treinado pra isso, nunca me disseram, meus amigos não me ensinaram, nunca quiseram isso de mim.
De um dia pro outro eu tinha que ser a representação de tudo que eles queriam, e se eu errasse o passo malandro, tava fodido.
A voz que eles querem
O andar que eles querem
A brutalidade que eles querem
O pau que eles querem
A força que eles querem
O poder capital que eles querem
Depois de me reconhecer homem, a sociedade me flagrou mestiço, e me cobraram a inteligência e educação e honra e aceitar toda a merda que me empurram no cu e garganta como um bom descendente de japonês.
Cresci na favela caralho.
A ilusão da passabilidade quer anular minha história, me tornar palatável, aceito, o “até parece homi né, pô nunca diria”
…
Por acaso eu estava com a camiseta “eu não sou cis”
O delegado perguntou
“O que é cis?”
E eu disse:
“Você, senhor”
Tudo que eu não sou e nem quero ser
Eu não sou branco, eu não sou cis, meus dentes não são bons, meu nome é sujo, e o que eles chamam meu nome não é meu nome, pois meu nome eu mesmo dei e se não legitimaram tratei de pixar no muro
E pode crer que eu tenho é muito orgulho de tudo isso, de todas as pessoas que conheci nessa trajetória, todas essas pessoas incendiárias, brilhantes, incríveis, corajosas e marcadas, que englobam o T do mundão. T de trans e de travesti e de tesão e de talento pra passar dos 27 anos de expectativa de vida que deram pra nós, pq a gente não vai aceitar, a gente vai viver, a gente vai lutar
A gente VAI.
Imagem concedida pelo autor.