Por Helena Vieira.
A mulher “natural” e a transexual: bucolismo de gênero.
Parte da dificuldade do “senso comum” em reconhecer a legitimidade do gênero das pessoas trans está relacionado, entre outras coisas à equiparação das noções de natural e verdadeiro e à hierarquia entre natural e artificial. É muito comum ouvir “Não importa quantas cirurgias você faça ou quantos hormônios você tome, não vai ser mulher ainda”, seja porque não seríamos dotadas de uma suposta “essência feminina”, seja porque porque os aportes da biologia escolar sobre os cromossomos se tornaram uma convenção definidora do que é um homem e do que é uma mulher.
Não há recusa em dizer “parece uma mulher” ou em dizer “é igual uma mulher, mas não é de verdade”, a recusa está em dizer “é”, porque a noção de “verdadeiro” é a noção de natureza, e natureza aqui tomada como sendo 1-) Os processos que ocorrem no mundo sem nenhuma interferência tecnológica/humana e 2-) Tudo aquilo que diga respeito a biologia, como fato biológico.
Neste emaranhado de natureza/verdade é que a categoria do artificial toma lugar, afinal, a justificativa para dizer “este não é um corpo verdadeiramente feminino, porque você só tem este seio, mediante uma prótese, ou só tem estas curvas e pele, por causa deste ou daquele hormônio artificial que tomou”, é a de que tais mudanças no corpo jamais ocorreriam “naturalmente”. A noção de que o artificial está sempre para o perverso, o falso, penso eu, tem relação com os mitos fundantes do mundo ocidental: um paraíso bucólico, ingênuo e pervertido pelo sexo, leva os humanos a condenação do trabalho, o que é o trabalho se não o próprio paradigma da produção do mundo artificialmente? O trabalho é a categoria que produz o mundo e produz tudo aquilo que não está ” dado” no mundo, é o que transforma a natureza e produz a cisão fundamental entre o natural e o artificial. Tudo o que é artificial e/ou tecnológico decorre, em alguma medida, da ação do trabalho e portanto, da condenação que nos afasta, em definitivo, do mundo bucólico do paraíso.
Então, veja: a baunilha de verdade é muito cara, a acessível, é sintética. O couro, a mesma coisa. O homem do campo é tomado sempre por mais saudável, menos corrompido, menos ambicioso. Produzimos, sobre a ideia de natureza e sua oposição com o que “não é natural” uma hierarquia valorativa. Veja, por exemplo, como receitam chás: toma esse remédio aqui, é natural, não faz mal.
Entretanto, como aponta a Donna Haraway, em “Manifesto Ciborgue” essa cisão natural/artificial já não faz mais sentido. O olhar, de um jovem que usa óculos, é artificial? A relação virtual entre duas pessoas, não é real? É necessariamente pior que a “presencial”? As roupas, que tomam o corpo quase como pele, são ou não parte de nós? A ideia de que somos já, ciborgues, é profundamente importante para romper esse conjunto de equívocos que se produzem na conceituação do que é verdadeiro, natural, autêntico.
O bebê, feito por inseminação, não é de verdade? Certa vez, ficava com um rapaz de academia, destes bombados, ele ousou me dizer que “meu corpo era legal, mas não era natural”, eu olhei pra ele: quilos de suplemento alimentar, exercícios que movem os músculos de forma que a ” natureza” jamais demandaria, em equipamentos de academia que são tecnologias corporais e perguntei: “Cara, o teu corpo é natural por acaso?”.
Sempre que falo para estudantes de ensino médio ou para o público não universitário e não ativista, essas questões surgem e tornam sempre o diálogo muito mais produtivo, afinal, quando provocamos uma reflexão sobre o “Ciborgue” e os limites borrados entre natural e artificial, eles compreendem facilmente.
A produção de todo corpo é tecnológica, uai. As identidades são tecnologias sociais que operam sobre os corpos para a manutenção deste ou daquele sistema de mundo. A essa busca de uma verdade natural no gênero, eu chamo de bucolismo de gênero, um tipo de escapismo das mudanças que a tecnologia opera nas relações sociais, e, certamente, nas de gênero.
Imagem: Lynn Randolph, para a capa de “Manifesto Ciborgue” de Donna Haraway.