A PEDAGOGIA DO ÓDIO

Texto de Nosly Mel.

“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar”.

Adoro essa Frase de Nelson Mandela. Adoro e protejo-a. Vou guardá-la pra sempre dentro de mim. Não tem como ler e não relacioná-la com a “transfobia nossa de cada dia” que nós mulheres travestis/transexuais sofremos em nosso cotidiano.

Sou Funcionária Pública do Estado/MS na área da educação (administrativo) e também sou acadêmica do Curso de Pedagogia da UFGD.

De manhã tenho um estágio remunerado pelo curso de Pedagogia com uma turminha de 6 a 8 anos.do 2º ano do Ensino fundamental. Já a tarde trabalho no administrativo de uma Escola Estadual e lido com alunos de 13 a 17 anos. De manhã a turminha do estágio me adora, ganho de presente doces, balas, desenhos… Quando eles me vêem correm e me abraça e diz que sou a professora mais “linda do mundo”. Quando encontro eles pelo bairro ou no centro da cidade, eles fazem a maior festa. Me cumprimentam, abraçam e beijam! Percebo que essa turminha não tem vergonha de falar comigo em público, também não sentem preconceito pelo fato de eu ser uma travesti e olha que nem tenho taaanto assim a tal da “passabilidade feminina”! Sou alta e tenho voz grave!

Uma vez, Marcelo (nome fictício) chegou na sala de aula indignado. Perguntei o que houve, e ele me disse que seu pai tinha dito à ele que eu não era “professora” e sim “professor”, pois segundo o pai dele eu sou um “homem” e seu filho deveria me tratar dessa maneira. Onde já se viu!!. Ele abriu a boca a chorar e me defendeu, não só disse que eu era “professora” como também eu era a professora mais linda e legal que ele já teve!

Teve também um caso do Marcio(nome ficticio) de 5 anos, que disse ao seu pai que eu era tão bonita quanto a mãe dele. O pai disse pra ele que eu era um “homem” e que ele não deveria dizer “bonita”. E disse pro menino, prestar atenção na minha voz . Daí eu quis saber: O que você respondeu? Mário é um menino muito inteligente e questionador, ele me contou que respondeu ao pai assim: “Olha, eu acho que a voz dela é grossa porque ela tomou muito “tereré”( bebida típica no MS) no sereno e ficou rouca pra sempre (rs)”.

Essas crianças ainda não aprenderam a discriminar, não aprenderam a praticar transfobia!

Já à tarde na escola onde trabalho, convivo com uma turma de adolescente e jovens Eles tem uma certa “reserva” comigo. Embora eu seja muito respeitada pelos alunos, percebo que muitos deles têm vergonha de vir conversar comigo, ou falam comigo escondido dos amigos e quando me vêem na rua, Muitos fingem que não me conhece. Não que eu me importe, sou profissional, mas não tem como deixar de perceber e fazer uma análise crítica. Percebam que aqui eles estão aprendendo a praticar a transfobia!

Uma vez Paulo (nome fictício) de 16 anos, no meu aniversário, me deu uma caneta linda toda “customizada” e uma agenda de presente! Fiquei emocionada e dei um abraço nele! Daí ele me disse bem baixinho olhando pros lados pra ver se ninguém estava vendo: Nosly não conte pra ninguém ta! Se minha mãe fica sabendo ela vai ficar brava, ela é muito preconceituosa e não gosta de gay e nem de travesti. Se ela conta pro meu pai to ferrado!! Fiquei constrangida. Obviamente guardei segredo! Tinha que protegê-lo!

Teve também o caso de uma aluna de 15 anos que pediu pra eu deixar meu facebook aberto no modo “público” pra ela acompanhar minhas postagens. Ela disse que gosta muito de mim. Questionei-a: porque você não me manda um convite? Não é mais fácil? Ela respondeu: não posso Nosly, minha mãe monitora minha rede de amigos e ela não quer que eu te adicione!

Não tem como lembrar da famosa frase de Nelson Mandela, quando a gente ouve essas confissões deles. Dói constatar que é dentro da família que começa o primeiro curso “intensivo” de ódio às travestis. As agressões, assassinatos que estamos expostas no dia- dia tem origem na educação familiar. Eu sei porque fui ensinada a ter preconceitos também dentro da minha família. Nós ouvimos muito dentro da sociedade sobre o mito da família sagrada que ensina o amor incondicional. Mas esse amor é só para seus iguais. Praqueles que escapam da cis-norma, resta a hostilidade a rejeição e a marginalização. O lar da família brasileira é uma fábrica de meninos valentes e de meninas princesinhas e também é uma fábrica de castigos aos “corpos estranhos”. A família é uma escola onde se ensina compulsoriamente a pedagogia da transfobia! Só que eu faço a outra pedagogia a que tem o poder de transformar o ser humano, a que ensina o respeito, a compaixão, solidariedade, empatia, sororidade. A que ensina formar cidadãos íntegros, éticos, que respeita as pessoas independente de cor, raça, religião.E sobretudo da sua identidade de gênero, da orientação sexual. Sonho com boas novas. O dia em que os pais realmente ensine seus filhos amar ao próximo como a si mesmo, como manda o “livro sagrado”que eles dizem seguir. Utopia?

Imagens concedidas pela autora.


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