Textos de Lana de Holanda e Jaqueline Gomes de Jesus, respectivamente.
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Li a reportagem da revista Veja, que trás em sua capa o título “Meu Filho é Trans”. Depois de anos sem ler a revista, por total divergência política, me senti tentada em ler a reportagem. Achei incrível, confesso, a maior revista do país (e que há décadas parece ter poder de influência no pensamento e na conduta do brasileiro) trazer em sua matéria de capa a questão trans.
Achei mais incrível ainda o enfoque: a necessidade de apoio que as pessoas trans precisam por parte de suas famílias. Infelizmente vivemos numa sociedade onde pessoas trans estão mais propensas ao suicídio, onde pessoas trans são expulsas de casa e onde pessoas trans também são expulsas do colégio, uma vez que esse ambiente se mostra totalmente despreparado pra nossa existência e convivência.
O mundo é extremamente violento conosco. Apesar de estarmos numa novela que está batendo recordes de audiência, ainda somos o país que mais mata pessoas trans apenas por serem trans. Daí a importância da família no apoio, no suporte e na não-violência.
Após ler a reportagem fiquei com uma percepção acentuada de algo que já vinha pensando nos últimos dias: a tentativa constante, por parte da mídia, de “higienizar” nossas vivências. Na matéria são mostrados relatos da típica classe média/classe média alta (que são, obviamente, o público da revista). É narrado, ao longo das páginas, o processo de aceitação e tolerância dos filhos trans, pelos pais que são advogados, chefs de cozinha, empresários, professores, etc.
Esse pode ser o público da revista, mas certamente não é a realidade da imensa maioria das pessoas trans. A maioria, assim como a população brasileira como um todo, não vem de uma família com formação acadêmica e alguns carros na garagem. Eu mesma, que comecei a ser aceita como sou pela minha família nesse ano, sou filha de uma empregada doméstica e um cobrador de ônibus.
Recentemente uma amiga me falou que estava incomodada com o “Liberdade de Gênero”, do GNT, pois na tentativa de positivar as histórias trans, eles estavam focando apenas (e novamente) em pessoas de classe média/alta. Se ignora, por exemplo, que diante da realidade precária a que estamos sujeitas e vivemos, um emprego de carteira assinada no Mc Donald’s ou numa central de telemarketing, é sim uma história positiva, de superação da regra e do lugar comum, que são o não-emprego e a prostituição.
A Veja seguiu a mesma linha que o programa da GNT, e da novela: mostrar uma realidade que muitas vezes não dialoga com quem vive essa realidade.
Outra “higienização” da publicação: não usar, em momento algum, a palavra travesti. Travestis existem, fazem parte do movimento T, e também enfrentam imensas dificuldades e barreiras, assim como as “mulheres trans”. A palavra travesti ainda é carregada de tabus e preconceitos idiotas, que acabam se refletindo nos nossos corpos e no nosso dia-a-dia, de todas as pessoas trans.
A revista ainda usa termos totalmente equivocados, como “corpo errado”, “corpo de menima”, “corpo de menino”, etc. Termos e expressões usadas pra facilitar o entendimento, mas que fazem permanecer a ideia de que ser homem ou mulher é algo resumido puramente ao corpo e ao sexo biológico.
A intenção da publicação pode ter sido boa, mas ela por si só é um belo exemplo de que existe um longo caminho a se percorrer e se aprender quando o assunto é transexualidade.
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A Revista Veja trouxe uma matéria racialmente cega: NENHUMA das pessoas apresentadas é negra!
Importante destacar que a culpa não é dos entrevistados, mas da revista, que falhou em mostrar a diversidade racial da população trans.
O que os entrevistados podem fazer é apontar isso para os repórteres que os entrevistaram.
O ideário da branquitude, que apaga pessoas negras da lista das pessoas visíveis, deve ser sempre denunciado.
A visibilidade trans, para além de ser positiva, também tem de ser diversa, senão reforça estereótipos raciais sobre a população.