Vamos analisar o enunciado acima compartilhado e/ou curtido por páginas como “Feminismo com classe” e “QG Feminista”. Trata-se de um enunciado ou suposto enunciado atribuído a uma pessoa transexual. Aqui já vemos um funcionamento específico: são radfems, pessoas não trans, que estão compartilhando a fala de uma pessoa transexual. Não qualquer fala evidentemente, uma fala de pessoa transexual que radfems acham politicamente adequada, que elas endossam como um tipo de fala modelo, uma fala (moralmente) correta de um transexual a partir de um ponto de vista radfem.
Uma fala que elas colocam coraçãozinho no final. Evidentemente não seria qualquer tipo de fala. Quando elas elegem essa fala como o modelo de enunciação de si enquanto transexual elas silenciam todas as outras falas possíveis de pessoas transexuais – que são, no geral, só para início de conversa, diametralmente opostas a esta.
E qual a fala transexual que o filtro da ideologia radfem considera como politicamente adequada? Precisamente a fala de uma pessoa transexual que deslegitima ou desqualifica a sua própria identidade. O paradoxo do que se supõe ser uma mulher trans que não se identifica como mulher, mas sim apenas como transexual. A própria inclusão de pessoas trans num feminismo trans-excludente dito radical só pode ser um tipo de paradoxo, aliás.
Há aqui um forte aspecto paradoxal. É paradoxal dizer-se apenas transexual pois a transexualidade implica a identificação com o gênero oposto ao que se foi designado ao nascer. Há aqui a modalização dessa identificação como algo não completamente legítimo ou autêntico. Mas o paradoxo aqui tem dois níveis que precisam ser distinguidos na análise.
Um talvez mais superficial: é paradoxal por si só uma pessoa transexual dizer que ela não pertence legitimamente ao gênero com o qual ela se identifica em termos de identificação pessoal, individual. Mas o centro da discussão não tem que ser esse, a abordagem desse primeiro nível do paradoxo, no nível da identificação individual. A questão não é sobre como individualmente essa pessoa se identifica e sim como ela generaliza sua experiência como a única válida e desqualifica as demais identidades trans. O problema é justamente radfems mobilizarem essa fala como um suposto modelo de reconhecimento da subjetividade trans, como a pretensa forma correta de ser trans a partir da ideologia trans-excludente no feminismo radical.
Vejamos as estratégias argumentativas utilizadas para desqualificar a reivindicação do reconhecimento das identidades trans. Obviamente não se trata apenas de uma pessoa transexual que meramente se identifica como uma “pessoa do sexo masculino transicionada”. Uma identificação por si só não implica um discurso autoritário, simplesmente dizer-se transexual ao mesmo tempo em que não se diz mulher não implica a adoção de um discurso autoritário e transfóbico. Essa identificação, por si só, embora seja um indício forte, não constitui critério suficiente para determinar que se trate de um caso de transfobia internalizada.
Mas esse enunciado acaba sim defendendo um discurso transfóbico e para identificar a transfobia nesse discurso (que é também, neste caso, uma transfobia fortemente internalizada) é preciso sobretudo se atentar para os efeitos implícitos das palavras.
Dizer que passar por procedimentos que aliviam a disforia não a faz ser mulher (ou “não te faz mulher”) pode ter duas interpretações distintas e amalgamadas. A primeira interpretação é sobre o fato de que, a nível individual, aquela pessoa não se tornou mulher em virtude desses procedimentos. A outra interpretação, a qual certamente as radfem endossam, é dizer: nenhuma mulher trans se torna mulher de verdade por realizar tais procedimentos. Percebam o deslizamento do individual para o coletivo? O enunciado fala de uma experiência que se supõe individual, absolutamente singular, para falar logo em seguida acerca de uma suposta verdade genérica sobre a transexualidade, e ainda mais: sobre uma pretensa fala legítima da transexualidade no feminismo radical trans-excludente.
Agora vamos abordar a cereja do bolo: a questão do fingimento, da vergonha e orgulho. Precisamos ler os implícitos para tanto. A autora, ao se dizer transexual enquanto nega ser mulher, afirma que têm orgulho de si mesma, implicando que:
Transexuais que se dizem mulheres tem vergonha de si mesmas.
Transexuais que se dizem mulheres não tem orgulho de si mesmas.
Transexuais que se dizem mulheres fingem ser do sexo feminino.
Transexuais que se dizem mulheres não aceitam a realidade física.
É interessante explicitar o que no texto está implícito. Porque precisamente daí podemos avaliar politicamente as proposições acima e questionar tais evidências: transexuais que se dizem mulheres não tem vergonha de si mesmas; elas podem ter sim orgulho delas próprias. Não há nada auto-evidente que possa afirmar o contrário. Aliás, é precisamente o contrário: em virtude de termos orgulho do que somos, de sermos trans, nos dizemos mulheres.
A partir de um ponto de vista transfeminista, entendemos que o reconhecimento das identidades trans não implica a adoção de uma perspectiva não autentica em relação a si próprio. Isso passa pelo questionamento da cisgeneridade como norma, como a pretensa natureza dos seres humanos. Mulheres trans não fingem serem mulheres quando dizem serem mulheres, tampouco estão negando o que se supõe ser a “realidade física”. A partir de uma posição transfeminista, orgulho, vergonha e fingimento passam a significar diferentemente.
Comentários
Uma resposta para “A transfobia internalizada e o radfem”
Radfem, ancap, terraplanistas e outros males da contemporaneidade.