A Vida Alheia Não é Brinquedo

Por Marina Porto.

Recentemente tomei conhecimento de que toma força um movimento, desses que se elege o “protetor da infância”, semelhante a estes que acusam obras artísticas de pedofilia, e que levanta bandeira contra a possibilidade de se retardar a puberdade de jovens potencialmente transgênero no âmbito de seu acompanhamento médico.

Seus protestos orbitam em torno de um suposto desconhecimento científico sobre os efeitos de medicações utilizadas como bloqueadores da puberdade, alegando “não existir consenso” sobre as melhores práticas para lidar com o público infanto juvenil e alardeando sobre uma série de riscos que só poderiam permear o imaginário de quem acredita piamente que o trans ativismo teria uma espécie de conluio financeiro com centros médicos para defender sua causa.

Saem por aí distribuindo matérias de revistas e documentários televisivos sensacionalistas, e panfleteiam isso como se fossem artigos científicos, orgulhosos de sua “documentação” acusam as equipes médicas de usarem crianças como cobaia para testarem uma espécie de plano maligno para extinguir a “família tradicional”, convertendo a juventude em travestis. Ignoram a vasta documentação acadêmica e indagam sobre supostos índices altíssimos de arrependimento e suicídio por quem decidiu pela transição, desacreditando a seriedade médica como se levar legiões de famílias a duvidarem dos especialistas representasse uma forma de prevenção aos riscos que, no mundo real, se agravam na medida em que nos distanciamos do acesso aos serviços de saúde, e agravam-se ainda mais na medida em que o desenvolvimento da puberdade trata de dificultar a possibilidade de se evitar procedimentos cada vez mais invasivos e arriscados, o que também é agravante da própria disforia experimentada pela pessoa trans. Exigem “provas” da transgeneridade como se fôssemos passíveis de sua reprovação, de sua intrusão e oposição, como se pudessem decidir por nossas vidas e assumir o posto dos centros de referência e pesquisa científica, os acusando de estarem brincando com a vida alheia, assim como faz um desses grupos que, hipocritamente, atende sob a alcunha de “hormônio não é brinquedo”.

Não entro em discussões acerca de qualquer “prova empírica” de características genéticas cerebrais masculinas ou femininas, como se isso pudesse ser imposto sobre quem quer que seja para “autorizar” o exercício de uma liberdade, simplesmente porque é sabido que isso não tem nenhum cabimento. Tampouco considero produtivo ficar dando voltas sobre algum “consenso” no que diga respeito às “ciências” psi, simplesmente porque esta seara médica não é e nunca será conclusiva. Lembrem-se que o que hoje se compreende por libido feminina um dia ocupou o status patológico de “histeria”.

Se prestarmos atenção nas resoluções do CFM sobre o processo transexualizador, notamos que a prática brasileira adota o emprego de hormônios sexuais apenas após os dezesseis anos, sem afastar nenhum dos demais cuidados protocolares regulamentados.

O diagnóstico da “disforia de gênero” (sic) infanto juvenil não significa, necessariamente, a interrupção da puberdade “aos 12 anos”, não, isso é uma afirmativa errônea, alardeada no exterior com o intuito de causar tumulto político eleitoreiro e inconsequentemente reproduzida aqui no Brasil. UM dos critérios para a utilização de antiandrogênicos (bloqueadores da puberdade), entre inúmeros outros, é a entrada na fase púbere “tanner 2”, o segundo* estágio de cinco, sendo a evolução dos graus de compleição determinantes sobre a intrusividade dos meios de reversão. Interrompe-se a puberdade como forma de prevenção ao uso de métodos progressivamente intrusivos. Como qualquer um deve ser capaz de imaginar, a puberdade de ninguém tem data marcada, não acontece da noite para o dia, e no entanto do dia para a noite já pode ser tarde demais.

Portanto não, os centros de referência brasileiros não estão brincando com a vida nem com a saúde de ninguém, estão fazendo o melhor possível segundo as melhores práticas possíveis.

Esse outro receio sobre “não se conhecer os efeitos” de bloqueadores hormonais também é infundado, visto que todos os medicamentos empregados nos tratamentos de pessoas trans foram desenvolvidos para outras finalidades e tem seus efeitos largamente conhecidos, fornecendo segurança o bastante para sua utilização. Também é bom notar que são feitos exames periódicos, monitorando qualquer problema que possa surgir de sua utilização. Também é assim com relação à puberdade, a medicina conhece muito bem o desenvolvimento do corpo humano, o bastante para retardar o desenvolvimento de características secundárias masculinas ou femininas com uma boa margem de segurança, se e somente se o conjunto de critérios de avaliação multidisciplinar resultar na conclusão de que esta é a melhor decisão. Cada caso é um caso, e seria sensato se deixassem de campanhas inconsequentes alardeando como se a medicina brasileira, seus centros de pesquisa e referência científica, estivessem brincando com a vida destas crianças, porque não estão.

A impressão que tentam passar, de que existiria uma espécie de “surto” ou “epidemia” em torno da transgeneridade, alardeada como uma espécie de “agenda” programada pela “esquerda” também é ilusória, um auê conspiracionista infundado. É absolutamente natural que do surgimento e propagação de uma especialidade médica as estatísticas sejam inicialmente progressivas, não apenas relativas ao aumento de clínicas especializadas e estudos mundo afora, como também pelo aumento do acesso à informação, à saúde, e pela atenuação da paúra previamente existente sobre a transgeneridade. O que muita gente chama de “modinha” a bem da verdade é um crescimento oriundo da conscientização e maior sensação de segurança acerca de posicionar-se pela quebra de um tabu.

Aos propagadores de campanhas inconsequentes que só fazem prejudicar o acesso à saúde de jovens trans em potencial, deixo o apelo: ponham a mão na consciência, leiam atenta e honestamente e levem a sério as resoluções e pareceres do CFM, não difundam informações duvidosas espalhando pânico sobre decisões que só dizem respeito aos diretamente envolvidos, podem ter certeza de que todas as contestações que se levantam foram e são objeto de ponderação na tomada de decisões de cada caso. Assim é a vida, assumem-se riscos e se exercem objeções de consciência na medida das contrapartidas, e isto não é diferente com relação às questões trans. Minar a credibilidade e desmoralizar nossos especialistas, reverberando sensacionalismo político é uma postura irresponsável, pra se dizer o mínimo.

Da minha experiência particular, ingressei no tratamento há quase vinte anos, passei pelo Prosex, mofei por anos na lista de espera do AMTIGOS, e agora faço monitoramento endocrinológico pelo CRT. Julgo ter conhecimento de causa o bastante para lhes garantir que a rede de saúde brasileira especializada na população trans não é um antro de cientistas malucos que sai receitando remédios e produzindo travestis em série, muito pelo contrário, esta medida é postergada ao máximo que se faça possível. Além do mais, sua capacidade de atendimento não é proporcional à demanda e, a bem da verdade, se pode contar nos dedos o contingente infanto juvenil atualmente atendido nos centros de referência.

A realidade familiar brasileira não acolhe e encaminha seus jovens potencialmente transgênero aos cuidados médicos, mas os expulsa de casa ou fazem de tudo para coibí-los, persuadindo a criança ou adolescente a “virar macho” na base do medo, ameaças, escárnio, constrangimento e violência, empurrando os casos de persistência para a automedicação e toda as consequências que a falta de acesso à saúde pode acarretar.

Também algo que os pretensos “protetores” da juventude parecem fazer vista grossa é sobre a comprovada reversibilidade instantânea da interrupção da puberdade e que esta medida, também comprovadamente, evita o agravamento da disforia decorrente do desenvolvimento corporal oposto ao desejo manifestado pelo(a) paciente, fornecendo maior tempo para ponderação e avaliação do caso.

Permitir que um jovem transmasculino desenvolva seios, ou que uma jovem transfeminina desenvolva barba parece mais (muito mais) preocupante, persistindo a propensão transgênero, que o tratamento de jovens cisgênero que desenvolvam hirsutismo ou ginecomastia, por exemplo. Daí o que salta aos olhos é a seletividade de um movimento que atreve-se a se interpor e obstruir o emprego de tais medicamentos apenas enquanto digam respeito às demandas transgênero, omitindo-se de indignar-se (sic) sobre sua utilização enquanto tratem de pacientes cisgênero, quaisquer que sejam as idades e finalidades de seu emprego.

Se tais campanhas do gênero “Hormônio não é Brinquedo” estão mesmo preocupadas com as crianças, pois que deixem de prejudicar o acesso à saúde de jovens potencialmente trans, atirando-lhes ao desamparo familiar e médico, e vão se informar sobre as atrocidades cometidas contra crianças intersexo, estas sim sujeitadas a hormonização cruzada e cirurgias não consentidas em nome de uma pseudo normalidade genital. Que dediquem sua energia por causas realmente nobres e parem de espalhar pânico e descrédito contra o ÚNICO recurso possível para proporcionar saúde a pessoas trans.

A sociedade agradece.


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