Texto de Raíssa Éris Grimm.
A violência cisgênera e suas hierarquias.
Se consideramos que tanto o sexo quanto o gênero são construções sociais
a diferença entre cisgeneridade e transgeneridade não se dá na ordem de uma “verdade interior” das pessoas ou dos seus corpos
mas de diferentes situações políticas frente às tecnologias que constróem sexo e gênero.
A cisgeneridade se constitui por uma posição desde a qual a enunciação do próprio sexo pode ocupar um lugar de “natureza”, de obviedade, de origem sagrada dos seres viventes
ao passo que a enunciação transgênera do próprio sexo constitui um lugar de “artificial”, de engano, de profano – algo que desvia daquilo que era marcado como o “original” da biologia.
Essa diferenciação não é simplesmente uma construção teórica, mas marca uma série de hierarquias sociais, desde as quais a violência cisgênera se exerce:
(1) Uma hierarquia corporal.
Enquanto o corpo cisgênero ocupa o lugar considerado “original”, ele é sempre o modelo desde o qual as corporeidades trans devem se espelhar e se ajustar para terem seu gênero legitimado
– espelhamento e ajuste à base de cosméticos, hormônios, cirurgias.
Quanto mais cisgênero, quanto menos uma pessoa parecer trans, maior sua possibilidade de ser aceito.
(2) Uma hierarquia epistêmica.
As pessoas cisgêneras constituem-se não só como o modelo desde o qual as verdades do sexo são pensadas, mas como as proprietárias autorais desde as quais as verdades de sexo e gênero podem ser enunciadas.
Em resumo: pessoas cisgêneras têm um poder estrutural para pensar sobre pessoas trans (interpretar suas vivências, narrar suas vidas) – desde um amplo escopo de teorias (psiquiátricas, psicológicas, antropológicas, sociológicas e – porque não – feministas).
Pessoas trans, por sua vez, não possuem um poder estrutural para pensar e teorizar sobre pessoas cisgêneras
(a exemplo disso, encontramos a própria resistência de pessoas cisgêneras se reconhecerem como cis).
Ou seja: todos os sistemas teóricos – da biologia, da medicina, da psicologia, antropologia, sociologia, e do feminismo – resistem a se deixar ser transformados para contemplar a vivência de pessoas trans.
Essa dupla hierarquia – epistêmica e corporal – implica que pessoas trans dificilmente encontram na nossa sociedade:
(1) a possibilidade de ver-se desde os próprios referenciais
(2) a possibilidade de pensar-se desde os próprios referenciais.
E tudo aquilo que desafia essa dupla hierarquia encontra uma resposta violenta, por parte dos guardiões e guardiãs da cisgeneridade.
O transfeminismo se instala como uma resposta política a essa relação de poder, buscando por um lado:
(1) construir outras visibilidades acerca dos corpos que desviam da cisgeneridade, positivando nossas diferenças para além de uma perspectiva de “passabilidade” ou assimilação.
(2) construir novas perspectivas teóricas acerca dos corpos, das vidas e da nossa sociedade.
É impossível tocar nossas vidas de uma forma respirável enquanto continuarmos sendo unilateralmente pensadas por pessoas cisgêneras, sem possibilidade de resposta ou de participação na forma como as tecnologias de sexo-gênero são pensadas
assim como
é impossível tocar nossas vidas de uma forma respirável enquanto os corpos cisgêneros continuarem enquanto o padrão unívoco de como se pauta “o verdadeiro sexo”, sem possibilidade de aceitação e legitimação para outras corporeidades desviantes.
Nomear a cisgeneridade como a violência que exerce
para manter-se enquanto padrão
é o primeiro passo.
Descentrar-se da cisgeneridade enquanto eixo
pensante e definidor das nossas possibilidades de existência
é o segundo
para de fato construirmos lugares de existência
respiráveis para nossas corpas
para nossas vidas
transviadas.