Aline Rossi e Ana Paula Henkel e suas declarações equivocadas na mídia sobre “subjetividade” e “sentimentos” de mulheres transexuais

Há um uso extremamente equivocado de noções como “sentimento, subjetividade, crença, psicológico, etc” que reafirmam lógicas de negação do reconhecimento da legitimidade das identidades trans. Quem nunca ouviu por exemplo “transgeneridade é uma realidade puramente/meramente/simplesmente/apenas/etc psicológica”? O que esses “puramente, meramente, apenas…” querem de fato dizer? Se algo é de natureza “psicológica” este algo deixa de ser instantaneamente … “material, concreto, objetivo…”? E por não ser material, objetivo ou concreto ele não é também “verdadeiro, real, legítimo”?

Noções que são contrastadas de forma irreconciliável com “objetividade, materialidade, biologia” são feitas na maior parte das vezes forma equivocada. Porque assumir que algo seja “puramente” subjetivo é assumir em si uma posição equivocada, já que a rigor a “pureza” subjetiva ou sentimental de algo não existe… pelo menos numa perspectiva que se supõe dialética, que assume a complexidade dos objetos que nos propomos analisar.

Vejamos apenas dois exemplos recentíssimos a partir de declarações de  Aline Rossi e Ana Paula Henkel em grandes plataformas midiáticas.

Em matéria no Universa sobre “Por que as feministas radicais não aceitam mulheres trans no movimento?“, encontramos uma fala não apenas arbitrária e injustificada, mas também lastimável:
 
“Todas as leis que penalizam crimes e condutas de discriminação têm uma definição fechada e concreta: racismo, com base na cor da pele ou etnia; sexismo, com base no sexo; homofobia e lesbofobia, com base na orientação sexual. O projeto de lei sobre transfobia, entretanto, assenta num conceito inteiramente subjetivo e aberto: gênero”
 
Gênero ou identidade de gênero, por ser supostamente um “conceito inteiramente subjetivo e aberto (??)” é usado como argumento em favor da não criminalização da transfobia (APENAS da transfobia, frise bem esse aspecto, não estamos abordando portanto a problemática da criminalização da LGBTfobia em si, e sim da transfobia especificamente; vale a pena a leitura de um texto que eu já fiz sobre isso, “A quem interessa a não criminalização da transfobia“).
 
É extremamente curioso essa rad dizer que orientação sexual e raça se basearem em uma “definição fechada e concreta” enquanto que gênero não seria. Gênero e identidade de gênero são conceitos tão fechados ou abertos, tão objetivos ou subjetivos como raça e orientação sexual.
 
Podemos elencar traços tanto “subjetivos” como “objetivos” para definirmos raça, gênero e orientação sexual. Nenhum desses três conceitos é mais ou menos subjetivo ou objetivo que o outro pois os três são questões que dizem respeito da constituição subjetiva e funcionam no interior das relações sociais de dominação.
 
Gênero ou identidade de gênero não são mais “abertos ou subjetivos” que orientação sexual e raça. Vamos então fazer uma aproximação entre gênero e orientação sexual. É frequente radfem acusarem o conceito de gênero como “subjetivo” em função do fato de transfeministas, as defensoras do uso do conceito, lutarem pela auto-determinação identitária.
 
Ora, lutar para que identidade de gênero seja uma auto-afirmação do sujeito não implica dizer que identidade de gênero seja em si um conceito puramente subjetivo.
 
Quando dizemos que quem deve determinar a identidade de gênero de alguém é o próprio sujeito isso não implica desconsiderar como essa identidade de gênero funciona em relações sociais de dominação que são sim objetivas.
 
Ninguém pode ou deveria arbitrar sobre gênero e orientação sexual de uma pessoa. Afirmamos isso em virtude da defesa do princípio de autodeterminação. Entendemos que não existem critérios objetivos e externos aos próprios sujeitos que possam determinar inequivocamente tanto o gênero quando a orientação sexual de uma pessoa. Isso faz de gênero e orientação sexual conceitos puramente internos, abertos ou subjetivos? De forma alguma.
 
É precisamente no interior da luta pela auto-determinação identitária que as lutas minoritárias se objetivam socialmente. Portanto, é no interior das lutas de auto-determinação das minorias que as categorias e/ou conceitos de identidade de gênero, orientação sexual e raça se objetivam socialmente, como questões que ultrapassam as identidades individuais dos sujeitos. Percebam como questões de orientação sexual e mesmo as raciais são na verdade muito parecidas com as de gênero e/ou identidade de gênero. 
A ideia que uma mulher trans tem a respeito de sua identidade feminina é sim subjetiva, mas o fato de uma mulher trans ser discriminada no mercado de trabalho em virtude de sua identidade é um dado passível de formalização objetiva: podemos mapear taxas de desemprego, renda, expulsão familiar e escolar e descrever objetivamente as discriminações e opressões que pessoas trans estão expostas, precisamente porque a discriminação contra as pessoas trans se estrutura como um fato social, e não individual.
 
Não existe contradição em dizer que essas categorias são subjetivas e objetivas ao mesmo tempo. Essas categorias, ao contrário, possuem aspectos que são tanto individuais como coletivos. Podemos abordar sim aspectos que tocam ora mais a individualidade ora mais a coletividade, mas entendendo a totalidade dessas categorias como ao mesmo tempo individuais e coletivas.
 
Vamos para o segundo exemplo. Manchete diz “ex-jogadora Ana Paula defende Bernardinho após polêmica com Tifanny“. Ana Paula alega que pessoas trans seriam uma “minoria barulhenta” que querem “empurrar a todo custo que sentimentos são mais importantes que fatos e biologia”. É muito curioso o uso do “sentimento” se opondo a “biologia” aqui. Digo isso precisamente porque Tifanny, jogadora transexual, pode jogar na categoria feminina precisamente por meio de critérios objetivos e biológicos, isto é, das taxas hormonais.
 
Tiffany e nenhuma mulher transexual ganha a permissão para jogar na categoria feminina através da apelação de que se sentem mulheres ou femininas ou por qualquer outro critério sentimental ou subjetivo. As mulheres transexuais, ao contrário, precisam apresentar taxas hormonais no padrão do que é considerado feminino por tempo estipulado pelas regras do Comitê Olímpico Internacional. Regras, portanto, objetivas, e não meramente “sentimentais”, como descreve tão equivocadamente Ana Paula.
 
É evidente que a identidade de gênero envolve subjetividade, sentimento, crença a respeito de si mesmo. Reconhecer isso não implica opor de forma irreconciliável aspectos objetivos, materiais, ou que se supõe ser biológicos. Subjetividade não anula a objetividade, assim como sentimento não anula a biologia. 

Sobre a jogadora Tifanny Abreu, leia também:


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