Por Jéssica Milaré. Texto também disponível na página Casa Neon Cunha. No dia 31 de março é comemorado o Dia Internacional da Visibilidade Trans. Mas também é aniversário do início da ditadura militar brasileira.
Enquanto os reacionários querem comemorar a Ditadura, nós devemos lembrar o que a Ditadura significava às LGBTQI, em particular às travestis. Aliás, os acontecimentos da época deixam nítida a hipocrisia dos reacionários ao dizer que, no passado, não existiam gays, lésbicas, travestis, transexuais. Se esse é o caso, por que, como diziam os jornais da época, ocorreram várias operações policiais com objetivo de “limpar a cidade” de prostitutas (sic), homossexuais, travestis, “desocupados” (sic)? Ninguém se ocupa de eliminar a existência de algo que não existe.
Durante a ditadura militar, a existência das travestis era uma realidade vergonhosa que os governos tentavam a todo custo esconder e eliminar. Os militares tinham o mesmo objetivo da Santa Inquisição na Europa entre os séculos XII e XIX: exterminar os grupos sociais inofensivos cuja existência era inconveniente aos valores morais preconceituosos impostos pelo regime. Embora ocorram frequentemente casos de violência policial contra travestis até hoje, não existe mais uma perseguição às travestis como uma política do Estado que é declarada abertamente nos jornais, como era o caso durante a Ditadura. O principal alvo eram as travestis.
Em 1968, quando da visita da Rainha Elizabeth II a São Paulo, o delegado José Wilson Richetti coordenou uma ronda policial cujo objetivo era, como declarou aos jornais da época, “limpar a cidade dos assaltantes, prostitutas, traficantes, homossexuais e desocupados”. Entre os “homossexuais”, o principal alvo eram as travestis. Assim, as travestis, os homossexuais, pessoas moradoras de rua e profissionais do sexo eram consideradas criminosas tanto quanto assaltantes e traficantes. Não eram seres humanos, mas sim uma “sujeira” a ser varrida da cidade.
No Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty), instalou-se, em 1969, uma operação chamada “Comissão de Investigação Sumária” que levou à cassação de 44 funcionários. Houve 15 pedidos de exoneração de diplomatas, dois quais sete eram justificados pela “prática de homossexualismo” e a “incontinência pública escandalosa”. Outros dez diplomatas foram submetidos a exames médicos e psiquiátricos por serem suspeitos das mesmas “práticas”.
Entre 1975 e 1982, nas administrações de Paulo Egydio Martins e Paulo Maluf, foram realizadas novas rondas comandadas também pelo delegado Richetti. Estima-se que, nessas operações, entre 300 e 500 pessoas eram detidas arbitrariamente durante uma noite num fim de semana, acusadas de vadiagem.
Em 1º de abril de 1980, por exemplo, o Estado de São Paulo publicou uma matéria intitulada “Polícia já tem plano conjunto contra travestis”. A proposta das polícias civil e militar era “tirar os travestis das ruas de bairros estritamente residenciais; reforçar a Delegacia de Vadiagem do DEIC para aplicar o artigo 59 da Lei de Contravenções Penais; destinar um prédio para recolher somente homossexuais; e abrir uma parte da cidade para fixá-los são alguns pontos do plano elaborado para combater de imediato os travestis, em São Paulo”.
Conheçamos um pouco da história de Martinha, baiana, dona de casa e travesti. Nascida em 1956, teve que lidar desde cedo com o ódio da mãe. “Prefiro ter um filho bandido do que pederasta”, dizia a mãe. Por conta das ameaças de morte que recebia de sua mãe (por injeção de estricnina, um veneno para ratos), ela fugiu de casa aos sete anos e procurou emprego em casas de família. Em troca de um dia inteiro de trabalho com ofensas constantes, ela recebia um prato de comida e um canto para dormir.
A solução para sua sobrevivência foi encontrada nos prostíbulos da Ladeira do Mijo, onde se abrigava com outras travestis. Tornou-se, assim, uma vítima da exploração sexual infantil, como infelizmente é muito frequente entre travestis adolescentes.
Em uma entrevista [pro Projeto #Colabora], ela mostra as marcas das agressões que sofreu da polícia e conta, como quem já perdeu as contas, que foi presa mais de 200 vezes durante a Ditadura. Era só sair de casa e se deparar com a polícia. Detida, só podia sair após retirar toda a maquiagem e acessórios femininos e vestir roupas masculinas. Martinha usava uma tática comum entre as travestis. Quando presas, para se livrar do cárcere e das torturas, elas se mutilavam com lâminas que traziam escondidas na boca. Com medo de contaminação pelo sangue supostamente infectado com AIDS, os policiais as liberavam.
[No Brasil] não foram feitos julgamentos nem foi criada uma memória das atrocidades cometidas pela Ditadura Militar. Por isso, ainda há pessoas inocentes, que acreditam que o Golpe de 1964 foi uma “revolução” necessária para conter um suposto “golpe comunista”. Essa suposta ameaça nunca foi comprovada, aliás, pelo contrário, há apenas provas contrárias à sua existência. Os documentos e os relatos comprovam que a justificativa era mentirosa.