No início do “Problemas de Gênero”, Judith Butler faz alusão a prática da problematização, ou “criar problemas”, e é uma passagem tão potente que não é raro vê-la sendo referenciada em diversos textos. Ela defende o ato de problematizar aquilo que nos parece natural, confortável, como práxis construtiva e necessária para a subversão do pensamento hegemônico – e justamente por essa potência, algo que é também temido e indesejado. Afinal, o paradigma vigente sempre oferece resistência; se fosse aberto a desconstrução, talvez não se sustentasse enquanto paradigma.
Como pessoas que pertencem a grupos sociais marginalizados, nós criamos problemas para o status quo. Desafiamos a todo o momento uma sociedade que se recusa a pensar através de uma perspectiva que não branca, cisgênera, heteronormativa, masculina, classe média-alta, e capacitista. E no que diz respeito aos problemas que nós mesmos criamos, tudo parece muito claro e direto: Existe uma sociedade injusta, e o desconforto dela com nossas reivindicações é o medo de abrir mão do poder que possui sobre nós, sujeitos abjetos. Criamos os problemas para combater as desigualdades e reivindicar nossos direitos e nossa voz.
Mas o que acontece quando quem cria problemas o faz dentro dos nossos ativismos, das nossas militâncias, dos espaços onde supostamente procuramos resistir a lógica de dominação onde o poderoso silencia o desempoderado?
Infelizmente, parece bastante comum que terminemos por incorrer nesse mesmo modus operandi que tanto condenamos. Tentamos apagar aquilo que incomoda, ao invés de abrir espaço para uma discussão e reflexão honestas. Buscamos desesperadamente a reafirmação daquilo que conhecemos, em que acreditamos – e, acima de tudo, da nossa “corretude”. Afinal, nós somos os mocinhos, certo? Nós somos os que lutam contra o patriarcado mau, ou a branquitude opressora, ou a heteronormatividade compulsória, ou a transfobia assassina… Certo?
Sim… e não. Nosso impulso é geralmente de pensar em termos dicotômicos e maniqueístas porque, afinal, estamos inseridos numa sociedade que nos ensina desde sempre que é assim que se deve pensar e chegar a conclusões sobre as coisas. Raramente é tão simples assim. Isso tem muito a ver com intersecionalidade, e sobre como não somos apenas “oprimidos vs. opressores”, mas sim atravessados por diversos privilégios e ausências de privilégios, que são contextuais, circunstanciais e relativas. Uma mesma pessoa pode ser simultaneamente vítima em um vetor, e algoz em outro.
Não podemos pensar as militâncias e ativismos em termos de “bando de gente marginalizada, tudo igual, mesmo nível de (ausência de) poder”. Exemplo hipotético: um ativista gay que tem 100 mil seguidores na sua página de Facebook absolutamente NÃO está na mesma posição de poder que um menino gay com um pequeno círculo social de amigos. Se esse menino gay decide, um dia, fazer um comentário questionando algo postado pelo ativista mencionado, e nosso ativista fica irritado e decide fazer um escracho público do menino, ou convocar seus seguidores a fazê-lo – essa seria realmente uma discussão em pé de igualdade? Seriam apenas duas pessoas marginalizadas debatendo entre si? As repercussões dessa troca seriam as mesmas para ambos os nossos usuários de mídia social hipotéticos?
Certas práticas, como: marcar váries amigues (especialmente pessoas de alta visibilidade dentro de mídias sociais e ativismos) numa discussão com uma única outra pessoa, expor em página de alta visibilidade uma pessoa que não tem vínculos com organizações ou presença na mídia social, perseguir alguém com quem você teve um debate que terminou mal nos espaços seguros dessa pessoa, entre outras, são práticas de dominação e silenciamento. Tudo isso intimida e promove a exclusão de quem não desfruta do mesmo nível de poder intra-comunidade.
Acho importante dedicarmos atenção a esse problema sobre o qual parece haver pouca reflexão ou análise. Embora eu mesmo já tenha experienciado esse tipo de silenciamento, não acho produtivo divulgar nomes, pois o propósito aqui não é fazer fogueira com ataques pessoais; não acho que seja um problema individual da pessoa A ou B, mas sim um problema estrutural. Enquanto ativismos e militâncias, nossas comunidades parecem ter uma resistência incrível à autocrítica, a se reavaliar, e a permitir o dissenso. Mas nossas próprias comunidades e ativismos e militâncias SÓ existem por causa do dissenso; porque temos algo a dizer que incomoda, que abala o status quo, que ameaça quem está no poder. E gostamos de acreditar que somos diferentes, que somos incapazes de exercer poder sobre o outro – que jamais reproduziríamos as mesmas práticas e estruturas que nos subjulgam na sociedade em geral em nossos próprios espaços. Infelizmente, nenhum de nós está imune de cair na armadilha de tentar desmantelar a casa-grande com as próprias ferramentas dela (o que Audre Lorde já nos alertava ser uma estratégia absolutamente ineficaz).
O que falta, e que eu peço que nos esforcemos honestamente para fazer, é, primeiramente, reconhecer o poder que exercemos. Muitas vezes adotamos tão profundamente a narrativa de vítimas desempoderadas que nos tornamos incapazes de admitir que acessamos qualquer tipo de poder. E pode não ser o mesmo de um homem cis, hétero, branco, rico; mas todos nós temos algum nível de poder que é passível de ser usado contra um outro. Para sermos diferentes daqueles que nos marginalizam, é necessário nos responsabilizarmos pelo mesmo e sermos capazes de usá-lo conscientemente; e mais do que saber contra quem usá-lo, é necessário termos o cuidado de não exercê-lo contra quem não devemos fazê-lo.
O dissenso é importante para nossos espaços porque nos obriga a parar e questionar paradigmas que, sem percebermos, se instauraram; a normatização de certas experiências em nossas próprias comunidades (e a consequente marginalização de outras); e também pode nos fazer, por vezes, ter de questionar a soberania do nosso poder nesses espaços organizados de resistência. Construir espaços não-hegemônicos não se resume a construir espaços com base em identidades marginalizadas em comum, mas mais importante, construir espaços que busquem ativamente deslocar verticalidades hierárquicas, e onde temos sempre cuidado e responsabilidade com nosso poder. Espaços onde o que se busca não seja a manutenção do consenso a qualquer custo e o pensamento de grupo, mas o acolhimento das diferenças, das críticas construtivas, e da possibilidade de mudanças.
Claro que isso não significa abrir espaço a pessoas hostis (por exemplo, permitir que uma pessoa transfóbica ofenda pessoas trans em suas próprias comunidades), mas sim oferecer abertura e acolhimento a vozes dissidentes que partam de dentro das nossas comunidades, mas não ocupam a mesma posição de poder da qual desfrutamos dentro desses espaços. Então, da próxima vez que aquela pessoa trans não-binária for reclamar no seu blog sobre binarismos, ou aquela menina trans gorda vá apontar gordofobia no post da sua página, ao invés de reagir agressivamente em sua própria defesa, tente respirar fundo e colocar em perspectiva o fato de que vocês não dialogam a partir da mesma posição de poder. Se estas são as vozes das pessoas marginalizadas pelas próprias comunidades que criamos para acolher quem é rejeitado pelos poderes hegemônicos, talvez nada melhor do que elas para nos mostrar onde é que incorremos na reprodução de exclusões, silenciamentos, e na incapacidade de lidar com a alteridade.