Breve nota sobre o VI congresso ABEH

Ocorreu em Salvador-BA na semana passada o VI congresso ABEH, o qual eu participei como ouvinte.

Vári@s teóric@s reconhecid@s participaram do congresso, que tinha a temática “Memórias, rumos e perspectivas dos estudos sobre a diversidade sexual e de gênero no Brasil”.

Farei apenas alguns breves comentários (que talvez sejam mais um desabafo) sobre o congresso, pois pretendo discorrer detalhadamente em outra postagem.

Apesar de o congresso ter separado uma mesa específica para discutir a despatologização das identidades trans*, a apresentação a Associação Brasileira de Homens Trans foi bastante fraca. Suspeito que essa nova associação seja um FTM Brasil institucionalizado – o que é bastante problemático.

Novamente contamos com Berenice Bento com sua fala energética e de certo modo muito empoderadora para tomar as “rédeas” da luta pela despatologização das identidades trans* – a qual segundo a colocação de Bento trata-se na verdade da despatologização do gênero, pois a classificação do DSM patologiza as expressões de gênero não cisgêneras – por conseguinte o gênero em si.

As duas falas de Bento foram muito poderosas – e eu simpatizo muito com ela. Mas até quando vamos depender da “boa vontade” de teóric@s cis, torcendo para que “acertem” (a revelia dos termos biologizantes que Bento utiliza sempre – sua única incoerência discursiva) na busca da humanização das pessoas que vivenciam a experiência não cisgênera?

Como lidar com pessoas trans* que reproduzem os discursos hegemônicos biologizantes ciscêntricos de gênero, que tanto prejudicam pessoas
trans*e cis?

Por que a colonização do “campo trans* do saber” continua reproduzindo discursos demasiadamente senso comum revestidos de ciência, mesmo em um congresso que procura desconstruir essas noções? Por que permanecem acríticos? Por que o assunto trans* permanece como “novidade” no Brasil e consequentemente nós não avançamos nas discussões promovidas pela própria teoria queer – a qual muit@s no congresso alegaram evocar?

Existe uma masturbação intelectual da “temática” identidades trans* – a exotificação e colonização pela academia ainda transmite a impressão de que o assunto é muito recente, mas sabemos que tem pelo menos 2 décadas – marco d@s teóric@s queer que impulsionaram os estudos sobre “pós-gênero” e identidades não-cisgêneras.

Parece-me também que existe uma disparidade entre discurso e prática.

Dentre discursos muito “libertários” de gênero, fui questionada sobre minha condição trans* por pessoas semi-desconhecidas. “O que isso importa” diziam uns, para logo em seguida questionarem se eu era cis ou trans*.

Dentro o lócus acadêmico, envolvidos pelo cosmo teórico, as pessoas possuem discursos libertários e progressistas, apontam e criticam várias problematizações sociais, mas fora desse contexto – na rua, em casa, no bar, enfim em seu dia-a-dia, repetem os mesmos discursos discriminatórios que criticaram anteriormente.

A prática está isenta de autocrítica, ou melhor, isenta de critica em sua totalidade.

Como esperamos reverter os discursos discriminatórios, se em 20 min. de apresentação somos muito críticos – mas em todas as outras horas do dia usamos expressões cissexistas, homo/bi/lésbofóbicas, racistas, ableístas, especistas, machistas, xenofóbicas, classistas e etc., arbitrariamente, como se nessas horas o discurso estivesse livre de seu poder reprodutivo/violento?

Talvez a academia precise criticar menos a sociedade e passar a se auto-criticar.

Viver é eternamente proferir discursos discriminatórios, tudo o que falamos e fazemos influi ou influirá negativamente na vida de outras pessoas – a eterna auto-vigilância é o preço do “humanismo” e da justiça social, se quisermos de fato ajudar a criar um mundo melhor.

 


 


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Comentários

4 respostas para “Breve nota sobre o VI congresso ABEH”

  1. Avatar de vivi ;)

    Reblogged this on Porcausadamulhere comentado:
    Texto importante em Transfeminismo; compartilho integralmente de suas observações, esperando que cause autoavaliações por aí.

  2. Avatar de Kathyla Katheryne S. Valverde.
    Kathyla Katheryne S. Valverde.

    Gostei do comentário da Viviane V. Gqueer, nessa breve nota, e o seu final: “Tudo que falamos ou fazemos influi ou influenciará…”
    Tenho conhecido pessoas, entidades respeitadas, etc..
    Entretanto continuo frustrada pois vejo lutas por tantas causas ( importantes mais não vejo como prioridade Nº1 em se tratando das lutas Transexuais Brasileiras) e a falta de uma enquete para se formar um ranking de prioridades. Escrevo assim, pois as Mulheres transexuais não trangenitalizadas estão levando em média (06) seis anos para efetuar sua redesignação e em apenas quatro centros de referência. Percebo que todos lêem, vêem e ouvem passivamente sem moverem uma palha para reverter o que chamo de escândalo, pois é desumano aguardar-mos todo esse tempo.
    Em tempo.
    “Estamos lutando para abaixar o preço da gasolina sem termos o automóvel”
    Kathyla Katheryne S. Valverde.

  3. Avatar de Jaqueline Gomes de Jesus

    Muitos ditos e não ditos foram significativos, com relação a questões trans, durante o Congresso, ainda escreverei mais detalhadamente sobre o que penso deles. Um, em particular, vale a pena já ser comentado, para reflexões, sem citar os/as personagens, pois não me autorizaram a tanto.

    Falando rapidamente com uma amiga, grande pesquisadora de corpo e gênero, ela me contou que estava em Minas Gerais e encontrou outro pesquisador, de sexualidades e movimentos sociais, que ambas conhecemos.

    Ele perguntou a ela se eu era realmente trans, ela respondeu que sim e perguntou a razão da dúvida. Ele disse que eu não tinha “marcadores trans”!!!

    Ambas rimos dessa situação patética. Ainda há pensadores dos corpos, das identidades e das sexualidades que acreditam em “marcadores trans”! Provavelmente não conhece nenhuma pessoa trans no cotidiano, tem apenas referências estereotipadas de homens e mulheres trans. Não creio que seja o(a) único(a) na Academia, somando-me às críticas de Viviane.

  4. Avatar de Thais Rocha
    Thais Rocha

    Concordo que o tema é novo demais para o Brasil. Estamos atrasados. Em tudo. Mas me preocupa uma importação direta dos discursos acadêmicos que venham de fora também numa tentativa de “acelerar” o campo de pesquisa. Não sou especialista na questão trans e estou iniciando meus estudos no campo do gênero, mas achei o congresso válido por fomentar isso a outros grupos que não venham de dentro do ativismo. Acho que a academia é conservadora sim. Mas vejo que uma problematização do vocábulo empregado é ainda insuficiente para fomar novos conceitos sobre o tema. É preciso buscar novas referências teóricas para a autocrítica.