“Mulheres”. O que nos vem à cabeça quando dizemos essa palavra? O quão amplo é a nossa categoria “mulher”? Ela abrange mulheres negras, deficientes, homo/bi/pansexuais, pobres? Até que ponto homogeneizamos essas categorias que, a princípio, devem ser tão amplas? Até que ponto as especificidades estão incluídas no nosso conceito sobre “ser mulher” ou até quanto elas precisam ser explicitamente mencionadas para que o que buscamos referenciar seja inteligível?
Muitas vezes é preciso explicitar sobre qual mulher estamos falando: a negra, a pobre, a deficiente, a não heterossexual, a fim de não apagar certas demandas específicas. Quando nos propomos a lutar pela igualdade entre os gêneros e dizemos que defendemos a “mulher”, devemos incluir todas as mulheres e, consequentemente, todas as suas especificidades. Uma mulher negra não vai ser livre da opressão enquanto não lutarmos contra o racismo, por exemplo.
Mas e se nem ao menos como mulher uma determinada mulher é socialmente reconhecida? Para ela, portanto se trata uma luta em dobro: além da necessidade de darmos visibilidade para determinadas especificidades desse grupo de mulheres, precisamos, sobretudo, incluí-las no próprio conceito sobre o que é ser mulher. É este o caso das mulheres transgêneras.
Nos atentarmos sobre qual é o sujeito representado pelo nosso imaginário é um exercício importante: pode nos revelar o quanto nossa maneira de categorizar o mundo, incluindo aqui pessoas, pode ser excludente. Nesse sentido, o Transfeminismo luta pela defesa dos direitos e da dignidade das pessoas transgêneras. E isso só é possível através da conscientização e problematização acerca da categoria mulher, o que nos leva à luta pelo reconhecimento das mulheres transgêneras como mulheres. Deste modo, mulheres transgêneras e suas vozes deixarão de serem invisibilizadas na sociedade. A disputa por uma palavra, neste caso a palavra “mulher”, é também uma luta política. É uma busca a fim de deslocar os sentidos únicos ditados pela norma cisgênera.
Frequentemente vejo que muitas pessoas se sentem no direito de desqualificar o gênero de pessoas transgêneras. O cissexismo está fortemente enraizado pela crença de que as pessoas nascem homens ou mulheres, sendo isso imutável. A partir desta ideia, as mulheres transgêneras vão ter suas identidades deslegitimadas e, consequentemente, desumanizadas. Não respeitar a identidade de gênero de uma pessoa trans* também é uma violência transfóbica. Temos que alertar para a não existência de uma ordem natural que legitima a identidade de gênero das pessoas cisgêneras.
Tanto as pessoas trans* como cis, todas elas possuem identidade de gênero e nenhuma é mais ancorada a uma suposta verdade biológica que a outra. Em termos de verdade ou mentira sobre nossas identidades, pessoas cis e trans* estão no mesmo barco. A mesma certeza ou dúvida a cerca das subjetividades das pessoas trans* está presente nas subjetividades das pessoas cis. Os barcos só se diferenciam na medida em que a identidade trans* é socialmente deslegitimada e isso nada tem de natural. É uma violência e, assim como o racismo, a homofobia e outras formas de opressão, precisa ser desnaturalizada e combatida.
Deslocar o sentido único de “mulheres” (incluindo nessa categoria as mulheres transgêneras) não se resume a uma ação que tem suas consequências apenas no “mundo das ideias”. Pelo contrário, existem muitas implicações práticas e cotidianas. Até mesmo as relações interpessoais não escapam de serem permeadas por relações de poder. Vejo muito sobre a necessidade de uma mulher trans*, ao se engajar em um relacionamento, ser “eticamente” obrigada a deixar explícito a sua identidade de gênero ou a sua morfologia genital. Essa exigência cissexista se liga muito a discursos que freqüentemente acusam pessoas transgêneras (em especial, mulheres) de “enganarem” seus parceiros.
Se entendermos a transgeneridade como mais uma característica qualquer, dentre tantas e quaisquer outras, se compreendemos que pessoas trans* e cis devem ser tratadas de forma simétrica, fica evidente que uma pessoa não é obrigada a fazer de sua transgeneridade seu cartão de visita, da mesma forma que uma pessoa cisgênera não o faz. Uma mulher transgênera não mente se diz que é uma mulher. Ela não é obrigada a falar sobre sua identidade ou genital assim como outra pessoa cisgênera não o é.
Com isso não estou querendo forçar uma obrigatoriedade de que as pessoas se relacionem com mulheres trans*. É evidente que não estou falando disso. Quem acredita neste discurso ou o pratica acaba acusando algo de perigoso nas mulheres trans*, o que reforça que elas são diferentes, aberrações e anomalias da natureza. Se transgeneridade é um fator tão decisivo a ponto de apenas por ele alguém se recusar a entrar em um relacionamento, certamente é porque vivemos em uma sociedade extremamente transfóbica. O discurso da necessidade de uma pessoa trans* ser obrigada a contar sobre sua identidade só se sustenta pela crença de que ser transgênero é uma abominação. Logo, compactuar com essa prática é reproduzir a violência que pessoas trans* sofrem, de que elas não merecem viver. Propaga-se assim a disforia.
Proponho uma lógica diferente: são as pessoas trans* que precisam ser protegidas de relacionamentos abusivos e não pessoas transfóbicas que precisam ser previamente “alertadas” sobre a condição transgênera. É o sentimento das pessoas transgêneras que está em jogo, pois são elas que estão sendo oprimidas. Ironicamente, já me deparei com argumentos que evocavam uma suposta “ética”. Pois bem, minha ética está em proteger quem de fato deve ser protegido. Então eu gostaria muito que essas pessoas que não gostam de se relacionar com pessoas trans* deixassem isso bem claro. Elas que devem estampar isso de antemão já que eu, enquanto mulher trans*, não quero ser enganada por alguma pessoa que pode de repente não gostar de mim apenas pelo fato de eu ser trans*. Afinal, a única excrescência ou anormalidade não está na transgeneridade, mas sim na ojeriza que surge quando se toma conhecimento da transgeneridade alheia. Logo, é o seu “asco” que deve ser mencionado, pelo seu caráter de excepcionalidade. E de uma única tacada, estaremos também deslocando o conceito de normalidade, de modo que ser transgênerx passa a ser encarado como um fato banal. Afinal de contas, quem está enganando, na verdade, é o cissexismo.
Caso contrário, é a transfobia que prevalecerá através do discurso que relega as pessoas trans* a desumanidade. Não vamos continuar reproduzindo a ideia que pessoas trans* são anormais, não-homens, não-mulheres de verdade ou simplesmente não-humanas. Não vamos continuar celebrando dias-das-mulheres sob uma terrível escuridão transfóbica, vamos celebrá-los mais conscientes de que a categoria mulher é mais ampla que a cisnorma pode supor.
Comentários
4 respostas para “Categoria Mulher: não se deixe “enganar””
Parabéns pelo excelente texto! Um beijo,. Seu Pai.
Gosto muito do que você pensa e da forma como traduz este pensamento nos textos.
Abraços
Neusa Portilio
Bia, parabéns pelo excelente texto, mais um para ilustrar as pessoas sobre gênero e identidade de pessoas trans!
Um ponto fundamental do seu artigo é reconhecer que o discurso da visibilidade para as pessoas trans tem sido deturpado para um discurso de “assumir-se”, feito até mesmo por ativistas LGBT, que internalizaram a transfobia e não conseguem ver as pessoas trans para além do trans. Magnífica observação a sua.
E viva a mulheridade em todas as suas expressões!
Texto Maravilhoso. Parabéns !