Corpos e saúde trans

Textos de Beatriz P. Bagagli.

É comum vermos a representação das alterações corporais por pessoas trans em discursos transfóbicos como algo não saudável. A ideia é de que a intervenção médica, neste caso, produz doença, porque você tem que fazer acompanhamento hormonal por exemplo, quando se é trans. A página “no corpo certo” acabou de falar isso.

Acontece que essa representação é profundamente equivocada. Essa ideia só se sustenta por um discurso bem mequetrefe a respeito de uma defesa de “corpos naturais” que simplesmente não se sustenta. É agressivo, transfóbico impor que a única noção de saúde seja você ter que simplesmente evitar ir ao médico. É impreciso também – é equivocado achar que os corpos de pessoas trans são essencialmente mais dependentes da tecnologia do que os corpos de pessoas cis. É preciso desnaturalizar o corpo cis. Todos os corpos são frutos dos avanços tecnológicos – quer você queira ou não, quer você perceba ou não. Não deveria fazer sentido – a menos que você simplesmente naturalize o corpo cisgênero como o único possível e legítimo de ser habitado.

A ideia de que pessoas trans estariam sendo “escravizadas” pelos procedimentos médicos é transfóbica. Ignora a agência de pessoas trans, nos representa como pessoas alienadas que precisam ser salvas pela teoria radfem. Não precisamos sermos salvas. Nenhuma feminista radical precisa me dizer o que eu devo ou não fazer com o meu corpo. Você vir me dizer que eu estaria sendo mais “saudável” se eu não fosse trans é uma ideia transfóbica. É uma noção autoritária sobre saúde, uma falsa noção de saúde que visa apenas tornar as vidas trans inviáveis.

Ao contrário: é a negligência médica que impacta negativamente na vida e saúde de pessoas trans. É ela que empurra às pessoas trans para a auto-medicação e verdadeiramente precariza a nossa saúde. A ideia de que intervenções médicas são “perigosas” é uma desculpa esfarrapada para a transfobia mesmo e a pseudo-naturalização grotesca do corpo cisgênero.

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Muito me espanta pessoas cis (em especial, feministas) acusarem as pessoas trans de serem “criações artificiais” ao passo que os corpos cis passam como transparentes. Se esquecem que todos os corpos, incluindo os cis, são tão produtos de artifícios tecnológicos quanto os corpos trans.

A pergunta que fica é: o que faz dos corpos cis, corpos tidos como transparentes, naturais? O que faz com que o corpo cis aparente uma continuidade assombrosa entre o seu produto real e o seu imaginário de corpo natural (como se o corpo cis que conhecêssemos agora fosse uma espécie de extensão espontânea da própria natureza)?

Todos os corpos são produtos de uma cadeia complexa de relações sociais que não podemos prever linearmente, tampouco calcular. A descoberta das vacinas, a industrialização, a informatização, medicamentos, etc. Todo o complexo social produz igualmente o seu corpo e o meu. Você realmente acha que seu corpo, por não sofrer determinadas sanções jurídicas e biomédicas sobre a transexualidade, está acima de todo esse complexo social? Resposta… não, não está.

O que acontece aqui é uma objetificação específica de corpos e identidades trans. Ao nos colocar na posição de objetos construídos — ao passo que a cisgeneridade é posta de lado, como impensado dessa construção social — nós somos destituídas de qualquer possibilidade de agenciamento subjetivo, de tomada de consciência de si. Somos meros produtos, não sujeitos que também interferem nesta construção.

Colocar pessoas trans como “meros produtos da sociedade patriarcal” é a extensão do próprio discurso patriarcal que tira qualquer possibilidade de constituição subjetiva e de resistência. É transfobia também.

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