Vejam o enunciado de um sujeito numa discussão em que o dito cujo é contra cotas em universidades públicas (numa discussão contra cotas raciais e para pessoas trans)
“Homossexualidade não é opção, ser travesti é”.
Gostaria de localizar quais são os discursos e saberes que tornaram esse enunciado enunciável, provido de algum sentido, mesmo que seja um sentido um tanto restrito. Sentido esse articulado como argumento em uma discussão. Restrito mesmo a um contexto mais imediato de interlocução: o sujeito disse isso numa discussão de facebook argumentando contra cotas. “Cotas para travestis é um absurdo”, dizia ele.
Chega até ser cômico quando esse enunciado é lido e interpretado a partir de outras perspectivas, outras posições discursivas. Afinal, uma comparação tão rasteira entre identidade de gênero e orientação sexual feita dessa forma de fato soa não apenas impreciso, mas ridícula. Mas a gente poderia se ater um pouco nele. Homossexualidade não seria opção, enquanto que “travesti” – seria talvez travestilidade? – é. O enunciado certamente dialoga com outros discursos, aqueles que diriam que orientação sexual homossexual, não apenas a condição de ser travesti, seria escolha. Certamente já ouvimos o discurso de que homossexualidade é uma “opção sexual”.
Mas eu continuo um tanto perplexa quanto à existência do enunciado. O que teria na condição de orientação sexual desviante da norma heterossexual um componente mais “fixo”, quero dizer, “mais” constitutivo da identidade do sujeito (como característica inata) do que a condição de identidade de gênero desviante da norma cisgênera? Quais contextos históricos de lutas mais amplos tornaram essa diferença – que pesa orientação sexual e identidade de gênero de forma diferente – enunciável? O que faz o gay um destino lógico da biologia ou de alguma outra forma de metafísica do desejo e a travesti uma escolha tida, digamos, um tanto quanto imprudente? Um acidente sem sentido? Afinal, quem em sã consciência “escolheria ser” travesti a menos por uma falta de juízo crítico da realidade? O que faz do “ser homossexual” uma ontologia constitutiva do sujeito e o que faz do “ser travesti” uma mera escolha que só poderia ser imprudente?
Ora, se estamos falando de cotas e seu argumento vai no sentido de ser contra elas, parece ser interessante apelar para esse caráter de “escolha eletiva” de “ser travesti”. Afinal de contas, ninguém está lutando a favor de cotas para homossexuais cisgêneros. Contudo, será que paráfrases do tipo “é uma escolha não ser travesti” ou “é uma escolha ser cisgênero” ou mesmo “é uma escolha ser homossexual cisgênero” seriam igualmente proferíveis?
Parte do argumento parece ir numa certa direção de mão única. De certa forma, faz sentido ser contra cotas para travestis partindo do implícito de que “qualquer pessoa poderia ser travesti” que desliza para “qualquer pessoa poderia se reivindicar indevidamente como travesti para usufruir do sistema de cotas”. Sabemos também como o argumento é bastante parecido quando falamos de auto identificação quanto raça/etnia. Falar de uma certa “escolha/opção individual” também nos faz retirar do discurso do sujeito coletivo que luta por direitos.
Mas o que parece faltar de fazer sentido diz respeito ao fato de que, à revelia de uma existência de um devir travesti selvagem, em que toda e qualquer pessoa tem a potência de se tornar travesti, nem todas as pessoas são travestis. E de fato nem todas as pessoas – diria, a maioria delas – jamais iriam se reivindicar e serem – num sentido amplo da palavra – travestis.
A direção única deste argumento contra cotas para travestis trabalha politicamente esse silêncio discursivo. Contudo, o fato incontornável de que nem todas as pessoas são trans e a existência pesada e insuportável do significante cisgênero insistem em retornar, fazendo o equívoco ainda mais visível. Alteridade que toca a questão do real das identidades e o real da formação social, tendo em vista que as posições empíricas que travestis ocupam na sociedade são muito diferentes daquelas ocupadas pelas não-travestis. Não esqueçamos dos números “90% se prostituem” e “30 e poucos anos de expectativa de vida”. Números que desvelam: exército de mão de obra extra-precarizada e “roubo” de 40 anos de nossas vidas.
E você: é a favor cotas para travestis e pessoas trans em empregos e universidades?
Comentários
Uma resposta para “Cotas e travestilidade”
Nashmir! Estão de parabéns pela excelência do site em transmitir de forma tão embasada, questões voltadas para transexuais e travestis!