Crime de Transfobia (ou: uma resposta à biologização transfóbica da pessoa humana)

Por Paulo Iotti.

Recebi há pouco postagem de uma advogada ironizando acusações de crimes de transfobia, a pretexto de que, apesar da decisão do STF, seria necessária lei anterior que definisse o que é ele (curiosamente, não fala o mesmo do crime de homofobia – lesbofobia, gayfobia e bifobia). Ironizou, dizendo que é advogada há algumas décadas anos, então não caberia ensinar pai nosso à vigária em questão (!). E ainda teve a coragem de dizer que quem acusar outrem de crime de transfobia estaria sujeito(a) a punição penal por calúnia, injúria ou difamação (!?!). Curiosamente, não fez o mesmo com o crime de homofobia (contra pessoas LGB), e pra ser coerente, teria que ter feito o mesmo… mas “pra que” coerência nessas horas, não é mesmo?!

Pois bem, deixa eu contar um “segredo” pra vocês (podem fazer chegar a ela, se quiserem):

STF reconheceu homotransfobia como crime de racismo (inclusive especificando a população “LGBTI+” como grupo vulnerável protegido por tal criminalização), por isso mandou aplicar a Lei 7716/89 (que é a Lei Antirracismo). A tese do STF está disponibilizada em link do próprio STF, no final desta matéria: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=414010>. Então, a Lei 7716/89 é a “lei anterior que define” os crimes de transfobia e LGBTIfobia em geral, como espécie de racismo, como sempre fez com o racismo contra negros e outros grupos ali especificados. O artigo 20 da referida lei diz que é crime “praticar, induzir ou incitar o preconceito e a discriminação por raça”, que foi onde o STF enquadrou a homotransfobia (LGBTIfobia). Nunca houve definição legal específica do que significa exatamente, em todos os mínimos detalhes, “preconceito ou discriminação por raça” ou injúria motivada “por raça” (idem por “cor, etnia, religião ou procedência nacional”) e isso nunca impediu a aplicação da lei penal, porque desde sempre se criminalizaram condutas por “conceitos valorativos”, ou seja, conceitos que não são definidos em todos os mínimos detalhes pela lei, o que é feito pelo Judiciário no caso concreto (cito Claus Roxin, jurista alemão, um dos maiores criminalistas vivos, e no Brasil, Cezar R. Bittencourt, sobre o princípio da taxatividade aceitar criminalização por conceitos valorativos tais).

Por exemplo, o crime de injúria é “definido” pela lei como “ofender a dignidade e o decoro” de alguém – na lógica da citada advogada, não teria lei dizendo “o que é isso”, mas não é assim que decide a jurisprudência penal MUNDIAL. Idem sobre as agravantes genéricas de “motivo fútil ou torpe”, que não são desenhadas em todos os mínimos detalhes como ela quer fazer crer que seria necessário (à luz da jurisprudência MUNDIAL, não é). Se estivesse correta na sua crítica, tudo isso seria “inconstitucional”, por violação do princípio da taxatividade (sempre ironizo dessa forma, em minhas palestras, quem critica a decisão em termos equivalentes ao que essa advogada usou).

Mas, para quem quiser um conceito um pouco mais “definido” de discriminação por raça, achará na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Racismo, válida no Brasil por força do Decreto 65.810/1969 (tratados e convenções internacionais se internalizam no Brasil dessa forma), cujo artigo 1º, §1º, afirma que “a expressão ‘discriminação racial’ significará toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública”.

Ou seja, será crime de transfobia toda “distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em” identidade de gênero (reconhecida pelo STF como critério racial relativamente às minorias de gênero, da mesma forma que a orientação sexual relativamente às minorias sexuais – só às minorias, porque não existe “racismo reverso”), à luz do artigo 20 da Lei 7716/89, na interpretação que foi dada pelo STF.

Então, referida advogada precisa estudar “um pouquinho” da evolução do princípio da taxatividade, na forma como aplicada pelos Tribunais pelo menos, para além do “silogismo perfeito” de Beccaria (aquele pelo qual o Judiciário não interpreta e nem pensa na verdade, só aplica raciocínios abstratamente previstos em todos os mínimos detalhes por lei prévia, o que, DICA, nunca foi o caso das leis penais mundiais em geral, que sempre aceitou conceitos valorativos tais, carentes de alguma interpretação, desde que não sejam “intoleravelmente vagos” – e se não é intoleravelmente vago o crime de “praticar, induzir ou incitar o preconceito e a discriminação” por cor, etnia, religião ou procedência nacional, também não o será relativamente a orientação sexual ou identidade de gênero). Ela pode querer outro conceito de taxatividade?!

Evidente que pode, mas não pode falar como suposto “oráculo da sapiência jurídica” de uma forma que contraria a decisão do STF que ela diz comentar e mesmo a forma que a jurisprudência constitucional MUNDIAL aplica o princípio da taxatividade…

Logo, o que essa advogada falou é de uma profunda ignorância, por denotar desconhecimento daquilo sobre o que comenta. Para quem se vangloria de décadas de advocacia, sua fala não faz jus a quem trabalha há tanto tempo na área (pelo menos estudando e saindo do feijão com arroz).

Na verdade, querem saber?! Deixem ela divulgar essa besteira (!), porque aí um monte de pessoas transfóbicas sofrerão processos penais de crime de racismo transfóbico, pelo artigo 20 da Lei 7716/89. Quem sabe assim não aprendem a respeitar ou, pelo menos, não discriminar pessoas trans?! Toda e qualquer forma de manifestação de preconceito homotransfóbico (LGBTIfóbico) constitui crime, à luz da lei prévia (7716/89), na correta interpretação dada pelo STF no julgamento da ADO 26 e do MI 4733.

Quem sou eu para dizer tudo isso?! Sou o advogado que moveu as ações que geraram a decisão do STF que reconheceu a homotransfobia/LGBTIfobia como crime de racismo (ADO 26 e MI 4733) e é citado oito vezes no histórico voto do Ministro Celso de Mello (Relator da ADO 26), além de mais uma na ementa (também da ADO 26). “Acho” que sei do que estou falando, portanto. Obrigado, de nada. Quem quiser “testar a sorte”, fique à vontade, só aguarde a representação ao MP para denúncia por racismo homotransfóbico ou (caso seja ofensa individualizada e a vítima queira) injúria racial homotransfóbica, para que mova ação penal pública incondicionada (e se ele não fizer, aguarda a ação penal privada subsidiária da pública que a lei concede à vítima em casos tais). Quem quiser ir “pro play”, fique sabendo que não sou Doutor em Direito Constitucional e advogado com farta experiência de contencioso à toa. #FicaDica#NaveMãeSOCORRO#RespiraçõesProfundas


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