Por Sessiz Zarif Rosa, 12 de julho de 2021.
Eu ainda não assisti ao filme “Luca” da Disney, que foi lançado em 2021. Mas percebi que algumas pessoas comentavam acerca do filme, e em suas falas defendiam que certos trechos do mesmo podiam ser interpretados de modo a expressar a sexualidade dos protagonistas, mais precisamente, que seria uma metáfora para uma não heterossexualidade, e que a razão do uso de uma metáfora seria explicado por variados motivos: 1) é uma obra cujos protagonistas são crianças, e falar sobre sexualidade infantil é algo delicado; 2) é uma obra voltada para o público infantil; 3) a nossa sociedade é marcada pelo preconceito em relação à diversidade sexual. Enfim, mesmo não tendo assistido ao filme, quero falar sobre a representatividade de personagens não heterossexuais e não cisgêneros em obras artísticas, e, mais especificamente, sobre a crise de tal representatividade.
A heterossexualidade e a cisgeneridade são sempre escancaradas, explícitas, reiteradas, repetidas à exaustão, esfregadas na cara das pessoas o tempo todo, empurradas goela abaixo das pessoas. Não tem nenhuma dúvida de que a heterossexualidade e de que a cisgeneridade estão presentes. Ninguém precisa falar de forma sutil ou indireta sobre a heterossexualidade e sobre a cisgeneridade. Ninguém precisa interpretar que talvez aquele detalhezinho escondido ali no canto possa vir a ser uma possibilidade de heterossexualidade ou de cisgeneridade. Isso acontece na vida em sociedade e nas obras artísticas.
Aliás, mesmo quando estamos falando do mais moralista e mais conservador dos indivíduos, nas nossas sociedades globalizadas contemporâneas, nunca estamos falando de crianças “assexuais”. Toda criança tem sexualidade e, assim como os adultos, é considerada heterossexual e cisgênera até que se prove o contrário.
Sobre a sexualidade explícita das crianças sendo representada nos desenhos animados, vou dar apenas um exemplo para não ser enfadonha: no filme “Up, Altas Aventuras” (também da Disney, lançado em 2009), acompanhamos a história de Carl Fredericksen, um idoso viúvo. Quando ele era uma criança, ele encontra uma menina, por quem se apaixona automaticamente, e com quem se casa. Seu interesse amoroso (ou seja, sua heterossexualidade e sua cisgeneridade) são demonstradas de forma explícita desde sua infância. Isso ocorre porque a sociedade reconhece a sexualidade infantil, mas não com esse rótulo de “sexualidade infantil”, afinal, lembre-se: a sociedade é moralista. A sociedade reconhece a sexualidade infantil com o rótulo de “comportamento saudável”, ou seja, uma sexualidade que está supostamente disfarçada, mas que está presente e escancarada, bem como, é uma sexualidade que está de acordo com a norma imposta, da heterossexualidade e da cisgeneridade compulsórias. Não tem problema nenhum um menino ou uma menina demonstrarem seus interesses amorosos e sexuais de forma explícita, conquanto que esse menino ou essa menina seja uma pessoa heterossexual e cisgênera.
Eu estou repetindo “heterossexual” e “cisgênero” (e seus derivados) de forma demasiada nesse texto? Na verdade, eu estou apenas demonstrando em forma de texto o que acontece na vida: uma repetição exaustiva dos conceitos de heterossexual e cisgênero. As pessoas chegam ao ponto de nem mais perceber que a heterossexualidade e a cisgeneridade estão ali, escancaradas, repetidas inúmeras vezes. Parece até que a heterossexualidade e a cisgeneridade nem estão ali, de tanto que foram repetidas de novo e de novo e de novo…
Voltando a falar sobre a representatividade de certos tipos de pessoas nas obras artísticas: quando se trata de um personagem não heterossexual ou não cisgênero, por que isso tem que ficar nas entrelinhas? Por que aquele detalhezinho que aparece de forma tímida naquele cantinho da narrativa é algo que pode ser interpretado como uma esperança de não heterossexualidade ou de não cisgeneridade? Mais precisamente, por que não podem aparecer de forma explícita nas obras artísticas a não heterossexualidade ou a não cisgeneridade? Por que elas só devem aparecer de forma escondida, nas possíveis interpretações que uma pequena parcela de pessoas possa vir a fazer?
Nos filmes e desenhos, a criança heterossexual vai fazer cartinha de amor, vai segurar na mão de quem gosta, vai ter um símbolo de coração pairando ao lado de sua cabeça quando olha para o seu objeto de desejo… Mas isso não vai acontecer com a criança não heterossexual…
Nos filmes e desenhos, a criança cisgênera vai vestir as roupas que quer vestir, vai ter autonomia de se afirmar com o gênero com o qual se sente à vontade, mesmo que seja um menino meigo ou uma menina tomboy… Mas isso não vai acontecer com a criança não cisgênera…
E assim segue a arte: NÃO representando explicitamente a criança não heterossexual e não cisgênera. Na verdade, nem explicitamente, nem implicitamente. Pois as crianças esquisitas e desviantes que são representadas nas obras artísticas são apenas crianças “normais”, “naturais”, “saudáveis”, “comuns”, mas que ou estão passando por algum problema, ou que são um pouco diferentes, sem com isso desviar de fato da heterossexualidade e da cisgeneridade. Essas obras artísticas não estão representando as pessoas, crianças ou adultas (principalmente as crianças) que sejam não heterossexuais ou não cisgêneras. Essa crise de representatividade, que faz as pessoas buscarem uma representatividade nos sinais sutis, escondidos, que podem ser interpretados como sendo uma possibilidade distante de representatividade, enfim, essa pseudo-representatividade NÃO É representatividade!
Como eu disse, eu ainda não vi o filme “Luca”. Mas uma coisa eu suspeito: se uma pessoa que tenha assistido esse filme precisa forçar uma interpretação para poder fazer parecer que aquela criança não é heterossexual, então, é simplesmente muito mais provável que aquela seja uma representação de uma criança heterossexual… Afinal, se alguém pretende fazer um filme com uma representação de verdade da não heterossexualidade e da não cisgeneridade, por que não o faria de forma explícita? Por que a heterossexualidade e a cisgeneridade podem ser representadas de forma explícita, mas a não heterossexualidade e a não cisgeneridade devem ser representadas de forma implícita, metafórica, fugidia, enigmática, indireta?
Retomando os argumentos das pessoas que consideram delicado abordar certos temas de forma explícita em obras artísticas por conta do preconceito, percebo-me levada a fazer um paralelo entre a representação artística e a própria vida: se você é uma pessoa não heterossexual ou não cisgênera, provavelmente vai tentar ficar se escondendo (e eu respeito essa atitude, pois encarar uma sociedade preconceituosa não é fácil) ou você vai se expor e, ao fazê-lo, vai ter a sua não heterossexualidade ou a sua não cisgeneridade percebidas de imediato. E é improvável que não sejam percebidas, afinal, a repetição exaustiva da heterossexualidade e da cisgeneridade causa dois efeitos relevantes e dignos de nota:
1) Quando a não heterossexualidade ou a não cisgeneridade são representadas de forma explícita, isso causa na maioria das pessoas uma sensação de espanto. É como se aquela representação, por mais sutil que fosse, estivesse sendo tão chamativa quanto um GRITO. Desse modo, a maioria das pessoas tem a reação de pedir para que a representação de não heterossexualidade ou de não cisgeneridade seja mais sutil, mais implícita, mais comportada… ou até cessada; ou para expressar de forma MENOS REPETIDA, mesmo que tenha sido apenas UMA demonstração;
2) Quando uma pessoa heterossexual e cisgênera deixa de REPETIR INIMTERRUPTAMENTE OS INCONTÁVEIS SÍMBOLOS da heterossexualidade e da cisgeneridade, ela é automaticamente interpretada como uma possível não heterossexual ou não cisgênera.
Desse modo, percebemos que se um filme retrata a amizade entre dois meninos que demonstram afeto ao se abraçar, e essa demonstração de afeto é imediatamente reconhecida como não suficientemente heterossexual, fazendo com que algumas pessoas interpretem essa relação como sendo não heterossexual, não estamos necessariamente diante de uma representação metafórica da não heterossexualidade, mas certamente estamos diante de um filme incapaz de retratar de modo explícito a não heterossexualidade.
O fato de algumas pessoas interpretarem que a demonstração de afeto entre dois meninos é uma demonstração de não heterossexualidade revela que as pessoas estarão iminentemente dispostas a estigmatizar como não heterossexual toda e qualquer mínima falha na repetição exaustiva dos códigos restritos da heterossexualidade. Portanto, espero que este texto torne perceptível que independentemente das interpretações feitas acerca da subjetividade dos personagens dessa ou daquela obra artística, a falta de representações explícitas de personagens não heterossexuais e não cisgêneros contribui para a criação e manutenção de uma crise de representatividade dos mesmos.
Imagem concedida pela autora.
Comentários
Uma resposta para “Crise de representatividade de personagens não heterossexuais e não cisgêneros em obras artísticas”
Certeira.
Há um grande apelo para a baixa autoestima da população LGBTI engolir pseudo-representatividade como sendo uma dádiva.
Exemplo emblemático foi o da JK Rowling que disse que um famoso personagem de sua franquia era homossexual, sem que houvesse indícios disso e com a mesma desfaçatez passou a destilar sua transfobia…