Definindo a ideologia de gênero como fundante de uma cisgeneridade compulsória

Texto de Inaê Diana da Costa Rossi 

Introdução

Tendo em vista as últimas notícias a respeito de identidade de gênero e as suas polêmicas, optei por fazer uma análise da chamada “ideologia de gênero”, evidenciando a sua existência a partir de uma apropriação conceitual subversiva, não como produto da população trans, e sim, como elemento fundante de uma cisgeneridade compulsória, através de determinados elementos, e de como a travestilidade a questiona de forma violenta os seus valores universalizados.

1 -­ Definindo a ideologia de gênero

Afirmar que há uma ideologia de gênero, enquanto sujeito trans, não significa uma aceitação de determinados valores estruturais e hegemônicos como verdadeiros e legítimos. Pelo contrário, é a apropriação desse conceito em benefício da população trans que busco realizar com este ensaio, e para isso, primeiro definirei o que vem a ser ideologia, perpassando-a com a categoria “gênero”, e em seguida, apresentando a travestilidade como uma ruptura com essa ideologia.

Para a definição de ideologia, utilizarei a concepção de Karl Marx como referência. A alienação, para Marx, carrega um sentido negativo. Trata-se de uma condição onde o trabalho ao invés de ser instrumento para a realização plena do homem e de sua condição de humano torna-­se, pelo contrário, um instrumento de escravização, acabando por desumanizá-­lo, tendo sua vida e seu próprio valor medidos pelo seu poder de acumular e possuir.

E como perpassaríamos essa definição com a categoria “gênero”? De uma forma até que simples: trocaríamos o trabalho como ponto central pelo corpo, assim resultando em: trata-se de uma condição onde o corpo ao invés de ser instrumento para a realização plena do homem e de sua condição de humano torna-se, pelo contrário, um instrumento de escravização, acabando por desumanizá-­lo. A concepção de humano não parte de uma apreensão real da materialidade que a vida humana comportaria, e sim, de uma imagem abstrata de “verdadeiro homem” ou “verdadeira mulher” com a qual deve possuir consonância. Essa consonância, deve-­se evidenciar, não passa de tentativa. Tentativa essa que jamais se encontrará com a sua finalidade, exceto na presença de pessoas trans.

Localizando geográfica, histórica, e culturalmente, a ideologia de gênero possui raízes eurocêntricas e judaico/­cristãs, e trata-se de um pensamento que se utiliza dos binarismos homem­/mulher, macho/­fêmea, masculino­/feminino, pênis­/vagina, natureza­cultura, dominação/­submissão, ativo/­passivo, hetero­/homo, etc., criados por ela, em benefício dela, que age em um processo de retro-­alimentação contínuo. A sua discursividade é, portanto, cíclica, inicia-se e encerra-­se em si mesma.

Não seria nem um pouco ousado afirmar que a ideologia de gênero em questão é perpassada por uma privilegiação de determinada etnia em detrimento de outras, resultando no sujeito universal, que é o homem cisgênero branco, heterossexual, e de uma classe econômica privilegiada.

E qual seria a finalidade da ideologia de gênero?

A ideologia de gênero teria como finalidade a cisgeneridade compulsória. A cisgeneridade corresponde aos indivíduos que estão em conformidade com o gênero que lhes foi designado ao nascerem, a partir de suas genitálias, pois é assim que somos identificados antes mesmo de nascermos, a partir de nossas genitálias, que serão chamadas, não ingenuamente, de “sexo biológico”, sobre o qual trataremos mais à frente, ainda que de forma breve. A cisgeneridade compulsória corresponde ao processo intenso e incessante de fazer com que os indivíduos e as suas ações encontrem-se de alguma forma em conformidade com a ideologia de gênero. Como não há conduta humana a-­ideológica, e é a ideologia de gênero a ideologia predominante, por certo toda a sociedade será composta por valores e olhares cisgêneros, estando até mesmo a população trans suscetível a reproduzir seus valores.

O sentimento de disforia em relação ao próprio corpo, experiência vivida por boa parte da população trans, não é senão fruto da cisgeneridade compulsória, que afirma a todo tempo, em todos os espaços, que o ‘homem de verdade” possui pênis, e a “mulher de verdade”, vagina, dentre outros aspectos mais que se pautam em uma binarização dos corpos em macho/masculino e fêmea/feminino, da qual não se poderia escapar, e que, como já afirmamos, é instituída pela ideologia de gênero imposta. Os seus efeitos sobre a população trans não são pacíficos: o desejo de mudanças bruscas no corpo custe o que custar, ainda que a própria vida; depressão crônica; síndrome do pânico; insegurança; sentimento de inferioridade no que se refere às capacidades cognitivas; etc. A população trans sofre um adoecimento para que a sua patologização seja justificada, e assim seja mantida uma inteligibilidade cisgênera, que distancia o Outro.

É necessário que fique explícito que todas as formas de violências, sejam elas de cunho moral, verbal, econômico, ou psicológico, direcionadas à população trans, diferentemente das de cunho físico ­que quase sempre resultam no extermínio da pessoa­, ocorrem de forma sutil. São violências que “nunca são intencionadas”.

A vida da população trans é uma vida agachada, uma vida de joelhos, uma vida submissa, uma vida prostrada, adaptando a fala de Fanon a respeito do colonizado. Toda pessoa trans é invejosa, pois deseja ter a vida da pessoa cisgênera. Ter a sua educação, a sua saúde, a sua moradia, a sua afetividade, o seu trabalho, o seu lazer. A normatividade cisgênera não lhe parece nem um pouco torturante, senão esplendorosa. Trata-­se, literalmente, de querer integrar a realidade de um presídio, o presídio de um corpo, pois ali há a certeza de que se alimentará ­ainda que em porções que não lhe são suficientes, de que terá onde dormir. Não à toa a hormonização farmacêutica pode tornar-­se um vício, e um vício fatal, expondo a vida a riscos para além daqueles que aos quais a ideologia de gênero subordina a população trans. Afinal de contas, não sabe nunca esta se passou ou não dos limites. Presume sempre que possui culpa: culpa por lhe agredirem, culpa por lhe odiarem, culpa por não lhe respeitarem, culpa por existir como sujeito abjeto. E isso é efeito da ideologia de gênero exercida cuidadosamente em cada prática transfóbica que se mascara no argumento de que ‘’não foi intencional’’, fazendo retornar a pessoa trans ao seu lugar prescrito de sentir-­se culpada.

Não obstante essas formas de atuação, a ideologia de gênero age de forma a capturar os indivíduos da população trans, fazendo com que estejam em consonância direta e inconsciente com a cisgeneridade compulsória. Direta e inconsciente, pois indireta e inconsciente todos e todas estamos o tempo inteiro, e assim estaremos até que haja uma mudança estrutural.

E como esses indivíduos se encontram em consonância direta e inconsciente com a cisgeneridade compulsória?

A cisgeneridade compulsória é de tal forma intensa e enraizada, que as mulheres e homens (quando lembrados) trans que são convidados pra falarem em palestras possuem algum tipo de passabilidade cisgênera [1]. O que isso quer dizer? Quer dizer que, a não ser que seja dito que se tratam de pessoas trans, a sociedade as entenderá como pessoas cisgêneras momentaneamente, ainda que as violente diversas outras vezes. Seja em seus vestimentas, comportamentos, ou aspectos físicos, são indivíduos que, querendo ou não, possuem o privilégio de parecerem cisgêneros em relação às demais pessoas trans, pois, sim, em uma sociedade que atua com base numa ideologia de gênero que impõe uma cisgeneridade compulsória, parecer cisgênero trata-­se de privilégio, para uma pessoa trans. De igual forma, para uma pessoa LGB (lésbica, gay, bissexual) que possui passabilidade heterossexual, a existência torna-­se menos pesada. E só de pensar que há uma autora que afirma a existência de um imperialismo transexual, e indivíduos que compartilham dessa afirmação [2], quando esta identidade ocupa a posição de colonizado, de subalterno…

2­ – A travestilidade como possibilidade de resistência e descolonização do corpo

A imagem que nos surge à mente, de que uma pessoa trans necessita possuir uma passabilidade cisgênera referente a tudo que esta comporta (hábitos, modo de como/o que falar, modos de expressar-­se, modos de existir), assemelha-­se à imagem do subalterno que, para possuir a mesma importância existencial que o senhor, necessita tornar-se semelhante a ele. Adquirir uma passabilidade cisgênera é tornar-se inteligível.

Nessa assimilação, não há libertação alguma, senão captura. Há um distanciamento de si em prol de uma aceitação fundamentada numa tentativa desesperada e cada vez mais intensa a uma imagem abstrata e inalcançável produzida pela ideologia de gênero.

Para algumas pessoas da população cisgênera, a inserção desses indivíduos trans em espaços antes de majoritariamente cisgênera, é de extrema importância, pois serve para fazer com que a população cisgênera perceba e se importe com a existência da população transgênera. Entretanto, se essas pessoas trans que frequentam esses espaços possuem uma passabilidade cisgênera, de que percepção e importância para com a existência da população transgênera se fala? De que população transgênera se fala, senão aquela que mais se aproxima esteticamente aos valores ditados pela ideologia de gênero e a sua cisgeneridade compulsória? Com o que esses indivíduos estariam rompendo, senão com a própria população trans, caindo na falsa crença da inclusão?

E a travesti? Que espaço ela ocupa? Quem ela é em meio a isso tudo?

A partir dessas questões, eu gostaria de tratar aqui uma estratégia de dividir e conquistar que é lançada sobre os corpos da população transgênera, mais especificamente os da mulher trans: a dicotomia travesti-transexual. Para causar uma certa polêmica, utilizarei o termo “transexual” como um processo de pacificação da travesti, cuja existência mostra-­se nociva à preservação da cisgeneridade compulsória, tornando o seu corpo apreensível pela ideologia de gênero, e não como uma das características da população trans no tocante à disforia referente às genitálias.

Essa dicotomização se daria da seguinte forma: a “transexual” seria o idealismo da ideologia de gênero aplicado ao corpo transgênero, mais precisamente, o da travesti. Ou seja, na tentativa de domesticar a travesti, de conservá-­la no lugar de subalterna, se oferece a possibilidade de ela se aproximar o máximo possível “da mulher”. Daí, inicia-se um processo de distinção, e é gerada a “transexual”. Se a travesti era aquela que não se sujeitava a ninguém, que mostrava a navalha na rua para quem quisesse se aproveitar dela, que revidava os olhares alheios com um “nunca viu?”, que fala alto, que gesticula muito, que vivia na ilegalidade, agora, como “transexual”, torna-­se sujeita a um homem, dócil, que fala sem aumentar o tom de voz um segundo sequer, que tem os seus gestos bem delimitados, e sonha com uma família bem tradicional.

A travestilidade contesta a cisgeneridade como algo natural e essencial, em sua própria materialidade, não necessitando de imagens abstratas aplicas à realidade material para tal.

A travestilidade torna-­se o mal absoluto, o inimigo dos valores, elemento que desvia e deturpa quem dele se aproxima, antes seduzindo irresistivelmente com a sua possibilidade de promiscuidade, luxúria e sodomia. A travesti é um vetor de doenças, tal como uma arma biológica ambulante. Não obstante questionar os valores religiosos, põe em xeque também diversas afirmações científicas.

Questiona continuamente a heterogeneidade do conceito de ‘’humano’’. O que é humano? Qual o significado de ‘’ser humano’’?Se não há um significado unilateral de ‘’ser humano’’, como é possível haver uma ‘’humanidade’’? Esta, portanto, também se esvazia, perde a sua essencialidade. Lembremos que durante o período de escravização da população negra, esta era vista como não-­humana, sem alma. Com a travesti não ocorre de forma diferente. Ela nem mesmo é compreendida como “humana” [3] para que seja desumanizada. A travesti simplesmente não-­é, evidencia o devir ao qual nos encontramos assujeitados/as enquanto seres viventes.

A sua existência é vista como violenta, não por ser violenta no sentido estrito e único da palavra. Afinal de contas, que confusão não pode vir a causar uma mesma palavra sendo utilizada para ações distintas? A violência exercida pela travesti não possui o mesmo que a violência exercida por uma pessoa cisgênera. Encontra-­se em posição extremamente desfavorável, e é quando tenta estar numa posição favorável, que se torna violenta. Violenta não por esfaquear alguém, ou socar o rosto de uma pessoa com quem se relaciona afetivamente. Violenta, sim, por se deslocar da posição à qual foi confinada pela ideologia de gênero. A sua movimentação incomoda. Não lhe apetece tão somente a noite, a rua, lugares comuns à população marginalizada. Deseja existir de forma plena, sem aderir aos preceitos da ideologia de gênero. Percebe-­se travesti. Identidade esta que, por mais que sofra tentativas de capturação pela cisgeneridade compulsória, lhe escapa habilmente.

A identidade travesti torna­-se, portanto, o referencial de uma ancestralidade que vem resistindo, e que permanecerá resistindo, à cisgeneridade compulsória. A travesti, acusada de artificialidade, denuncia a própria artificialidade da cisgeneridade, desnaturalizando-­a e desessencializando-­a violentamente.

Essa resistência, entretanto, custa-­lhe um alto preço, e é com a vida que paga

3 -­ Finalização

Dizem os fundamentalistas cristãos, que somos nós, população trans, que difundimos uma tal ideologia de gênero, quando na verdade, são eles quem a criaram e a difundem, seja nas escolas, excluindo a população trans, seja na área da saúde, com profissionais da área se recusando a encostar nos nossos corpos até mesmo depois da morte, seja no mercado de trabalho, nos destinando à prostituição compulsória. A ideologia de gênero é anterior à população trans tal como esta é entendida pela nossa sociedade, pois dela (da ideologia de gênero) é que parte a distinção das pessoas entre “normais” e “transexuais”. Hoje, com cada vez mais mobilização da população trans, essa distinção não mais se dá desta forma, senão entre “cisgêneros” e “transgêneros”. Não gostaríamos que houvessem essas distinções, mas, a população trans nomeando um grupo não-­transgênero como “cisgênero” ­que não se trata de uma distinção fundada em essencialismo, e cuja função é meramente epistemológica é sair da posição de objeto por um momento e tornar-se sujeito.

Há uma ideologia de gênero, e esta deve ser combatida, pois ela escraviza os corpos, extermina qualquer possibilidade de autonomia dos corpos, e, consequentemente, de liberdade.

Notas

[1]  Trata­-se da pessoa transgênera ou não ­transgênera, cujas características comportamentais, físicas, e gostos pessoais, possuem algum tipo de proximidade com a idealização de “homem” e “mulher” em acordo com a ideologia de gênero descrita no texto. A passabilidade trata­-se, portanto, da inserção na possibilidade de aceitação. Com pessoa não ­transgênera, refiro-­me às pessoas cisgêneras que também evidenciam que a cisgeneridade não se trata de algo natural e essencial, e sim, de uma reprodução de práticas tidas como “normais” pela ideologia de gênero predominante.

[2] Refiro­-me ao livro The Transsexual Empire e o seu conteúdo transfóbico, da autora Janice Raymond, e das TERFs (trans­exclusionary radical feminists).

[3] Refiro-­me à imagem abstrata do humano criada e sustentada pela ideologia de gênero imposta.


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