Texto de Alessandra Ramos Makkeda.
Deixe como está.
Fico muitas vezes incomodada com pessoas que tem tendências ao messianismo teórico.
Nenhuma teoria da(rá) conta inteiramente das microvisões políticas das pessoas trans e das travestis, e de como elas e eles se colocam no mundo.
Não vamos tentar cair na loucura de pensar que tudo aquilo que estudamos e aprendemos vai nos servir até a morte. Falo isso pois tenho percebido que algumas expressões sobre o que deveria ser o fenômeno trans, e as opiniões sobre o corpo-ativismo, o corpo-discurso das pessoas trans e travestis sendo tidos como sentenças finais, por parte de quem as profere.
Daí, cabe lembrar da história. Nós, as pessoas, criamos dentro de nós convicções, atitudes, defesas e discursos diários relacionados àquilo que recebemos, mas também daquilo que decidimos para nós.
É exatamente pela capacidade difusa – aquela que exacerba a norma, justamente por propor o impensável, por dizer que as normas podem ser vividas no dia-a-dia, de forma muito diferente daquela prescrita pelo patriarcado, é que instauramos a não-regra. Nossos corpos dizem mais do que qualquer construto teórico poderá jamais exprimir por completo.
É exatamente a capacidade de denunciar o sistema opressor de gênero vigente, que pode ser descrito sexista, heteronormativo e cisnormativo, é que somos trans. Somos transgêneros, travestis, transexuais e ainda uma infinidade outra de coisas, justamente porque aqui, em nosso território, somos nós quem ditamos as regras.
E essa é uma reflexão que venho fazendo há algum tempo. Por me ver sempre com posicionamentos mais moderados em alguns casos, é que me veio a vontade de escrever e afirmar que existem uma infinidade de pessoas, por mais desconstruídas que sejam, que ainda insistem em ditar as regras de como as coisas devem ser.
Quer um exemplo mais claro? Essa mania que as pessoas tem de criticar mulheres trans, transgêneras, mulheres travestis ou seja lá que raio forem, por definir o que é uma pessoa trans. Isso, aliás, acompanhado da visão acomodada do pensador em questão. E, convenhamos, é de um fundamentalismo tão nocivo quanto qualquer outro preciosismo levado ao extremo.
Esse tipo de prescrição, de vaticínio é nocivo, pois divide a comunidade. Ainda mais, é autoritário, pois não consegue alcançar os processos internos, o amadurecimentos de cada subgrupo específico.
As travestis sofrem por serem acusadas de não respeitarem os estudos internacionais de gênero, uma nova didática que tem sido introduzida em nosso sul global, que em muitas vezes, é tão colonizadora quanto o pensamento, a forma de organizar as identidades trans (dentro da lógica patologizante). Deveriam ser todas Travestis? Deveriam ser todas Trans? Pelo amor da Santa! Nunca vi um discurso mais revolucionário do que quando uma travesti diz que Ela pode ser o que quiser, que ela tem prazer de ser quem é, e principalmente, quando ela diz que não é Homem, Nem Mulher, que é TRAVESTI. Isso é muito mais revolucionário, e mais antigo do que toda essa coisa dos estudos de gênero, de genderfuck, mais do que quaisquer outra dessas modernidades que o público médio brasileiro / “queer” tem consumido (sem moderação) nas últimas décadas.
As trans – por sua vez, quando confrontadas, acusadas de quererem ser aquilo que não são, tanto pela modernidade avassaladora (que acha um absurdo qualquer pessoa trans se enxergar numa ótica binária – de escolher uma identidade social enquanto mulher ou homem trans), quanto pelos ativistas do movimento organizado tradicional, que ainda, em sua maioria, sustentam a rejeição ao modelo (mesmo com suas variações) proposto pelos estudos de gênero globais.
Sempre existirá dentro da comunidade trans visões distintas de como apresentar a sua identidade política. Ela se divide basicamente na maneira como as pessoas trans se compreendem, e tem desdobramento prático a partir daquilo que demandam. Sempre existirá pessoas trans confortáveis nas categorias de gênero – seja lá o que isso significar. Há pessoas trans que não caberão nessa classificação.
O gênero e seus signos só podem ser compreendidos a partir de sua própria matriz. Quem utiliza esses signos para se entender no mundo não deveria ser penalizado. Nem pra lá, nem pra cá. Somos aquilo que pudermos fazer do que somos. Aquilo que nossa imaginação permitir.
A verdade é que esse terreno, pessoal e único, que é o campo das identidades político-sociais, precisa ser metrizado pela compreensão do conjunto das identidades trans, e sob os pontos que temos em comum, ao invés daqueles que nos separam. Ou seja, os fatos de que TODAS as pessoas trans sofrem transfobia/homofobia; TODAS as pessoas trans infligem normas de gênero, não importa qual o modo pessoal e interno como o indivíduo se expressa. Nenhum termo êmico de assujeitamento pode ser maior do que o conjunto de nossas experiências. Não pode ser maior do que nossa determinação de se engajar no enfrentar das pautas que garantem o mínimo de dignidade para todas as pessoas trans e para as travestis também.
Imagem: ANTRA -Associação Nacional de Travestis e Transexuais.