Devir Travesti e a Política de Estado

Por Bia Bagagli

Deu o que falar nas redes sociais a medida da prefeitura de São Paulo sobre a criação de uma bolsa de um salário mínimo mensal (R$ 788) para as travestis estudarem. A memória discursiva nos mostra que essa população é extremamente marginalizada. Mas nem isso é capaz de convencer da necessidade desta medida, por muitas pessoas. De liberais convictos, transfóbicos declarados, fundamentalistas religiosos e feministas trans-excludentes, vemos uma discursividade que joga com o universal do sujeito de direito jurídico. Beneficiar travestis é um atentado para o Estado democrático e burguês de direito? É um privilégio indevido em detrimento das “demais pessoas” oferecer um salário mínimo para travestis que foram expulsas da escola e agora querem ter outras oportunidades de empregos que não a prostituição?Devir Travesti e as Políticas de Estado

O des-conhecimento ideológico não é ignorância, ou falta de informação como se costuma achar. Ao contrário, é excesso. O des-conhecimento ideológico em relação à realidade material das pessoas trans* – em especial, vou falar das travestis – se dá justamente porque os sentidos sobre homens e mulheres estarem tão saturados que não permitem a possibilidade de simbolização do real. Quero dizer, não é possível simbolizar o real das pessoas trans* em certos discursos – e com isso estou me referindo para suas situações concretas-materiais de existência – na medida em que existe a norma cisgênera. A norma cisgênera funciona como o universal de humano, ela apaga a possibilidade mesma de existência das pessoas trans* e nos coloca em posição de Outras. É, aliás, a forma própria do desdobramento do sujeito burguês universal de direitos na sua especificidade de gênero que tenta apagar os conflitos. E para isso, sem dúvidas, tanto a ideologia burguesa como a hetero-cissexista são mestras em fazer, em jogar com o contingente-universal, o individual-abstrato. É aí que entra o jogo entre o sujeito universal, indo de “todo mundo” a “qualquer um”, passando para o apagamento de uma realidade que incomoda. A realidade das travestis no país em que mais se mata pessoas trans* no mundo.

Vemos isso operando no discurso transfóbico da corrente dita radical do feminismo. Terfs se preferirem. Este discurso transfóbico, através deste des-conhecimento que referi acima, vai inverter completamente o funcionamento causa-consequência no que se refere as determinações que estão em pauta nas discussões e temas em relação a uma política pública destinada a travestis , num jogo ideológico bastante ardiloso (mas não menos falho!). A polêmica cairia nesta relação contraditória:

– Esta política pública desvela, ou seja, indica uma situação tamanha de exclusão a qual travestis estão submetidas (em relação a acesso a empregos, trabalho, educação, saúde, etc) justificando a necessidade dela; neste sentido, a própria existência da necessidade de uma política pública que vise oferecer esse tipo de “benefício” (tão básico!) é prova cabal de que não somente travestis são extremamente oprimidas, mas o próprio Estado tem sido negligente;

– Esta política pública, desvela, ao contrário, o fato um tanto quanto “escondido” mas de que toda forma constata a própria existência de um “privilégio”, neste caso, um privilégio de pessoas designadas ao nascer como homens!; esta posição remete à memória dos discursos (neo)liberais, que veem qualquer forma de proteção social do Estado como uma medida indevida e inapropriada para o Indivíduo Empreendedor. Indivíduo dono de si, aquele do discurso meritocrático.

O feminismo radical toma a consequência pela causa para corroborar a transfobia neste processo de ocultação da existência material das travestis assim como da própria existência do sistema político da cisnormatividade. Uma medida pública que vise diminuir as desigualdades é vista como sinal de que travestis são, na verdade escondida do sexo, as privilegiadas! E este discurso irá tomar não apenas as evidências de que são as mulheres cisgêneras e tão somente elas que são exploradas sexualmente e socialmente… o que indicaria que travestis talvez sejam oprimidas porque desejam (!?), afinal, elas teriam todos os benefícios dos machos na nossa sociedade (?!), afinal, a existência do pênis seria um fator incontornável e determinista. A questão é que o real é impiedoso, e desvela as inúmeras falhas deste discurso.

A resposta é, como eu já falei, em se notar para o furo deste discurso. Este diz respeito à cegueira do feminismo radical em teorizar sobre a materialidade da transgeneridade que emerge então numa concepção subjetivista das identidades transgêneras, como um sintoma. Se o que funciona como pré-construído é que travestis são privilegiadas e pessoas trans* donas e origens dos seus gêneros (elas sofreriam porque querem!), neste discurso, tomando as redes parafrásticas de que travesti seria homem e por isso “escolheria” por livre espontânea vontade sofrer a opressão de gênero (visto que homens não existem, mas apenas o Homem do Cogito e um pênis, que são praticamente a mesma coisa!) vemos uma verdadeira intrusão de uma concepção idealista (diria também extremamente liberal) sobre a situação material das travestis.

A resposta para um transfeminismo materialista se dá justamente na constatação de que pessoas trans* não podem ser origem nem causa de seus próprios gêneros, na exata medida em que pessoas cisgêneras não são origem dos seus próprios gêneros. Neste sentido, não há escolha-livre em ser transgênero, há determinações materiais. O transfeminismo se detém politicamente desta materialidade. A questão está em apontar como esta apropriação por este idealismo no feminismo radical serve para o total apagamento político das questões transgêneras. E determinação histórica-social não significa determinismo. É na exata medida em que algo é histórico e social que é passível de mudança, mas parece que o feminismo radical se esquece disso.

Ver feministas radicais reclamando da existência de políticas públicas especificas para travestis chega a ser engraçado, e talvez eu explore este ponto em que o absurdo político toca o humor. Vou então me utilizar do cinismo e mergulhar nas ironias. Eu poderia alertar a elas que a exclusividade de uma medida para travestis não pode ser tomada como uma Lei capaz de separar travestis de não-travesits. O Estado não consegue, de nenhuma forma, determinar quem de fato é ou não travesti através de uma medida científica-precisa e logicamente estável. Neste sentido eu avisaria para nossas irmãs radicais ficarem tranquilas: é muito mais fácil uma mulher cisgênera se beneficiar de uma medida para mulheres trans do que o contrário. Vemos isso na questão de abrigos e alas em presídios. Quando fazemos abrigos e alas para travestis as pessoas cisgêneras são também incluídas. Não existe nada maior que coração de travesti (sempre cabe uma pessoa cis nele!). Quando fazemos alas para travestis colocamos também homens gays cisgêneros porque sabemos que não existe uma diferença tão grande entre homens cisgêneros e travestis (afinal, ainda somos simbolizadas no mainstream jurídico-senso-comum como homens gays “extremamente femininos”). Fiquem tranquilas que nós não desejamos uma demarcação estanque entre mulheres cisgêneras e travestis. Nós somos solidárias e eu quero mesmo que as cisgêneras se beneficiem dos avanços transfeministas. Estamos de coração aberto. Travestis são como pessoas cisgêneras, só não os são na exata medida em que são travestis.

Travestis não constituem uma ontologia, qualquer pessoa pode ser travesti. A questão, de fato, é que nem todas as pessoas são travestis. No que se refere ao livre-arbítrio das pessoas, eu não tenho nada a colocar. Se alguém não quer ser travesti, não há nenhum problema! Apenas transexuais se encontram num regime discursivo bastante restrito de verdade diagnóstica-médica na construção de uma ontologia patológica. Há demarcação muito estanque entre quem é transexual ou não, mas entre quem é travesti ou não, não existe a menor possibilidade de erigir critérios demarcatórios. A mulher cisgênera, como as nossas irmãs radicais bem sabem, também constitui uma ontologia bastante específica em relação ao genital. Mas o que se pôs desde o princípio era de que se tratava de uma medida para travestis, isso é o que interessa! Se mulheres cisgêneras querem aproveitar o devir travesti, como eu disse: se sintam livres. Se sintam livres em desconstruir a ontologia do gênero (seria a abolição!?) e virem travestis. Eu realmente acredito que a libertação da mulher cisgênera passa pela tomada deste devir. Afinal, se mulheres cisgêneras irão se beneficiar da medida que se propõe para as travestis, eu não tenho nenhuma objeção, já que todo mundo e qualquer pessoa pode ser travesti. Não existe um saber técnico-científico que defina quem pode ser ou não travesti. Então vamos explorar esse fato até os limites! Vamos ser cínicos por um instante. Cinicamente travestis até o extremo.

Vamos então fazer uma medida pública para travestis (afinal todos nós concordamos que transfobia existe e é muito feia!) mas que seja de fato para travestis universais. Uma medida pública para travestis que contemple as não-travestis. Estou respeitando a necessidade do sujeito universal de direito Cisgênero. Se travestis podem, eu também posso, todas as prostitutas podem, todos os homens podem. Todo mundo pode… como eu disse coração de travesti é muito grande, não é verdade? Todo mundo pode ser travesti (mesmo que de fato nem todos queiram!). Vamos brincar com o universal (mas cuidado… eu estou sendo explicitamente malandra)! Vamos fazer um programa de assistência pública tão específico para travestis (mas tããão específico) que não será necessário nem dizer que se trata para travestis. Do particular para o universal. Nossa política é a potência do devir travesti. Este programa só poderá atender (ou atender prioritariamente, afinal, não estou aqui exclusivamente no campo discursivo do logicamente estável):

– Pessoas que não possuem emprego;

– Pessoas que passaram por exclusão escolar;

– Pessoas que querem uma oportunidade para poder voltar aos estudos;

– Pessoas que não conseguem empregos;

– Pessoas que foram expulsas de casa por suas famílias;

– Pessoas que se sintam obrigadas por falta de opções a se prostituirem e que queiram outras oportunidades.


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