Dialeto da revolta

Por Inaê Diana Ashokasundari Shravya.

Antes da papagaiada que se tornou o pajubá nas mãos de determinados teóricos – que evidentemente não fazem uso dele, senão como forma de se tornarem descolados -, ele possuía uma história. Uma história de resistência, de luta, de conflito.

Há muito tempo, onde não alcança a mentalidade neoliberal, em decorrência de sua demência vascular cerebral induzida, o pajubá incitava à revolta. Sim, à revolta. Explico. Para quem conhece a história da formação disto que hoje se designa Brasil, sabe-se que houve um momento da escravização de indivíduos de África em que nações diferentes entre si eram intencionalmente colocadas juntas para que não pudessem organizar uma revolta – o espectro da revolução haitiana já rondava os sistemas colonialistas da América do Sul [1] -. Essas nações falavam idiomas diferentes, e portanto não conseguiriam se comunicar entre si. Tá, mas quê tem a ver o pajubá com isso? Pensemos no que é o pajubá: trata-se de um dialeto da linguagem popular constituída da inserção em língua portuguesa de numerosas palavras e expressões provenientes de línguas africanas ocidentais (como umbundo, kimbundo, kikongo, nagô, egbà, ewe, iorubá e fon), muito usado pelo chamado povo de santo, em terreiros de candomblé, e pela população travesti – e não LGBTI, como se diz por aí. Isso pode causar um certo mal-estar e incomodar algumas pessoas que se designam como LGBTI, mas o fato é que durante um largo período de tempo houve uma recusa da população homossexual masculina em utilizar o pajubá, pois era visto como sendo proveniente da ralé, próprio de marginais, gente que não sabia falar adequadamente o português. Inclusive, as travestis tiveram mais proximidade com lésbicas cis do que com os homens cis homossexuais, chegando a ser personagens principais de livros de autoras lésbicas, como foi o caso dos livros “Georgette” [2] e “Uma mulher diferente”, ambos de autoria de Cassandra Rios. O interessante é que posteriormente o pajubá seria conhecido como “dialeto gay”, onde “gay” se refere à homossexualidade masculina, e não a sinônimo de transgressão dos limites impostos de gênero, como ocorreu no chamado “gay power” nas décadas de 60 e 70. Daí alguns autores dizerem que não existiria casamento gay, mas casamento homossexual, pois a categoria gay seria contrária à família, já que esta é uma das garantias de soberania da burguesia.

O surgimento do pajubá possibilitou que essas nações que possuíam idiomas e culturas diferentes, e que por isso foram intencionalmente colocadas juntas, se comunicassem entre si. Muitas travestis, para quem não sabe, chegaram a desempenhar a função de Iyalorixá em terreiros de candomblé – hoje em dia muitos terreiros de candomblé, no contexto carioca, possuem uma recusa a esse reconhecimento, talvez em decorrência do embranquecimento sofrido nas últimas décadas -. Isso talvez nos diga um pouco sobre a constituição do corpo no contexto ocidental.

Durante a ditadura militar no Brasil, houve uma operação do exército voltada especificamente para a população travesti. Foi a chamada Operação Tarântula [3]. Travestis chegaram a ser designadas comunistas nesse período. O pajubá foi utilizado como forma de despistar e de afastar pessoas indesejadas. As travestis possuem uma relação de parentesco que não é a da família. A madrinha, neste caso, desempenha um papel fundamental, onde ela é responsável pela inserção da travesti, lhe ensinando o que esta precisa saber enquanto componente daquele grupo. Travestis cuidam umas às outras, defendem umas às outras. Essa talvez tenha sido uma herança de relações de parentesco africanas.

Quando digo que o que autores têm escrito sobre o pajubá costuma ser uma papagaiada, não significa que o pajubá não deva ser estudado academicamente, seja por seus falantes ou não. Há uma especificidade da identidade travesti no território brasileiro, e ela não é muito bem compreendida, sendo muitas das vezes tratada como idêntica à identidade travesti (transvestite) que é utilizada noutros países, incluso nos de língua espanhola aqui no contexto latino-americano. Noutros países o termo ”travesti” se refere ao que seria uma pessoa cross-dresser aqui. A travesti brasileira possui relação direta com as nações africanas que foram trazidas para cá no contexto da escravização. Um caso bem conhecido foi o de Xica Manicongo, natural do Congo e escravizada, nos idos de 1591, muito bem lembrada no trabalho de Jaqueline Gomes de Jesus [4].

A travestilidade tem sido afastada, distanciada, das epistemologias amefricanas, sua corporeidade tem sido tratada como patogênica e sua existência patologizada há mais de meio século, efeitos estes do racismo de Estado. Não faz sentido abordar a travestilidade isolada, desconectada, das epistemologias amefricanas. O pajubá carrega em sua história o anticolonialismo, a resistência – as normas de gênero são efeitos do colonialismo, do Império sexual-. História esta que tem sido esvaziada, ouso dizer que intencionalmente esvaziada. Em termos de política de morte seu esvaziamento faz sentido, ainda mais no país que mais mata – falta de acesso aos chamados direitos básicos também é assassinato – travestis e transexuais. Mortes estas que não deixam de estar vinculadas ao feminicídio.

[1] Sobre isso, vale a leitura da obra ” “Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte”, do historiador Sidney Chalhoub, cujo trecho cito aqui:

“Em 1805, um ano após a proclamação da independência do Haiti, foram encontrados no Rio alguns ‘cabras’ e crioulos forros ostentando no peito o retrato de Dessalines, o ex-escravo e ‘Imperador dos Negros da Ilha de São Domingos’; em 1831, chegou ao conhecimento da polícia que dois haitianos haviam desembarcado no Rio de Janeiro e tinham sido vistos conversando com ‘muitos pretos’. (…) Não há, é verdade, nenhuma referência conhecida a uma insurreição de negros de grandes proporções na cidade do Rio no século XIX. Todavia, o temor de que isto ocorresse era sólido como uma rocha, e era realimentado de vez em quando por revoltas urbanas em outros lugares, por notícias de haitianos passeando nas ruas da Corte, ou pelos rumores de uma conspiração internacional para subverter as sociedades escravistas.”

[2] http://periodicos.uesc.br/index.php/litterata/article/…/1875

[3] http://www.scielo.br/scielo.php…

[4]https://www.e-publicacoes.uerj.br/…/article/view/41817/29703


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