Por Beatriz Pagliarini Bagagli.
A noção de estresse de minoria é muito produtiva para compreender a disforia de gênero. Disforia de gênero não é nada mais do que o sofrimento que decorre da incongruência entre a identidade de gênero de uma pessoa e o gênero que foi originalmente assignado no momento do nascimento dessa pessoa. Designamos como estresse de minoria o sofrimento que decorre das inúmeras situações de discriminação e exclusão social que uma minoria está exposta. O modelo de estresse de minoria foi originalmente pensado para explicar e abordar o sofrimento de pessoas gays e lésbicas, mas a literatura mais recente também aplica para pessoas trans.
Parte significativa do sofrimento psíquico que pessoas trans vivenciam se dá em função de estresse de minoria. Isso significa dizer que lutar por uma sociedade sem discriminação e exclusão social contra pessoas trans é sobre melhorar a saúde física e mental de nossa população – ou seja, efetivamente atenuar o nosso sofrimento psíquico. Não deve ser muito difícil de entender porque a inclusão de pessoas trans na sociedade, a efetivação e a luta por direitos negados como educação, moradia, trabalho e saúde impactam positivamente na saúde dessa população.
No entanto, dizer isso não nos permite concluir que caso toda discriminação social contra pessoas trans seja abolida as pessoas trans vão simplesmente deixar de necessitar de cuidados médicos relacionado a transição de gênero (terapia hormonal e cirurgias). Não existe nenhuma evidência que mostre que seja possível estimular ou encorajar a conformidade de gênero para que as pessoas deixem de serem trans, se tornem cis e isso seja benéfico para a saúde mental.
É sabidamente comprovado por evidências científicas, por outro lado, que os cuidados médicos relacionados a transição de gênero atenuam a disforia de gênero. Então não é nenhum pouco absurdo dizer que parte do sofrimento relacionado à disforia de gênero decorre de uma experiência corporal que é eficazmente abordada por procedimentos médicos – literatura e evidência científica na verdade é o que não falta. Em um mundo ideal sem opressão de gênero as pessoas trans vão continuar buscando, necessitando e se beneficiando desses cuidados.
No discurso radfem por exemplo existe essa ideia equivocada que toda pessoa trans só procura por alterações corporais porque foi oprimida pelas normas de gênero, o que redunda em dizer que seriamos alienados pelo gênero. Para um número bem pequeno de pessoas isso pode até ocorrer – a 2015 U.S. Transgender Survey da National Center for Transgender Equality, realizada com 28 mil pessoas trans ou de gênero diverso, mostra que apenas 5% das pessoas que destransicionaram fizeram por motivos intrínsecos, isto é, não foram motivadas por pressões externas e perceberam por si mesmas que a transição não era adequada para elas; dados a respeito das alterações corporais relacionadas a transição de gênero apontam para cerca de 1% de arrependimento. O número tanto de destransição como de arrependimento por alterações corporais de transição de gênero é extremamente baixo – e tem permanecido baixo a despeito do número cada vez maior de pessoas trans que têm conseguido acessar esses procedimentos nos últimos anos.
Assim, para a esmagadora maioria da população trans é precisamente o contrário do que supõe o radfem: buscamos acessar e acessamos esses procedimentos de alteração corporal justamente porque estamos cada vez mais construindo uma sociedade mais justa, menos excludente e violenta contra nós, que cada vez mais compreende a nossa identidade sem estigma, ódio ou ignorância.