Disputas acerca do conceito de “privilégio” em discussões sobre privilégio cisgênero

Este texto faz parte da Blogagem Coletiva pelo dia da Visibilidade Trans*, uma colaboração entre os blogues Transfeminismo, Blogueiras FeministasBlogueiras Negras e True Love.

Por Leda Ferreira do Amaral

Pessoas trans* que buscam engajamento e visibilidade em espaços de militância frequentemente precisam apontar o lugar de discurso de seus interlocutores cisgêneros, numa tentativa de demonstrar como os privilégios cisgêneros destes podem estar interferindo em sua capacidade de sentir empatia pelas pessoas trans*. Não raro, situações como essas terminam em disputas sobre o que “privilégio” envolve e se determinado grupo de pessoas cis têm ou não o que se chama de privilégio cisgênero – disputa essa que frequentemente prossegue para a própria negação da existência de privilégio cisgênero ou da cisgenereidade em si. Um dos espaços de militância onde isso ocorre repetidamente é o Feminismo.

Feminismo, para muitas pessoas, é um movimento que luta pela liberação e emancipação de todas as mulheres, e pessoas trans* buscam espaço e visibilidade dentro deste movimento, principalmente as mulheres trans*, que, mesmo se não fossem um grupo extremamente vulnerável socialmente, correndo os riscos mais altos de sofrerem violência física e sexual e exclusão das escolas e dos ambientes de trabalho, deveriam ter suas pautas levadas em conta por este movimento simplesmente pelo fato de serem mulheres.

A mera ideia de que todas as pessoas cisgêneras – incluindo as mulheres – exercem poder e privilégio sobre pessoas trans ainda encontra muita resistência entre muitas feministas. Uma das estratégias usadas é colocar em debate o próprio conceito de privilégio. Segundo esse pensamento, privilégio implica em beneficiar-se de alguma forma da marginalização ou exploração de outra pessoa. Mulheres cisgêneras não exerceriam privilégio cisgênero, portanto, porque elas não se beneficiariam de forma alguma da marginalização e violência que as pessoas trans* sofrem. O próximo degrau deste argumento é negar a própria cisgenereidade em si, potencialmente abrindo caminho para negar também a transgenereidade. É interessante perceber como a negação do privilégio cisgênero é base fundamental para a transfobia.

Para fundamentar tal pensamento, muitas vezes é feita uma analogia com o racismo: é ponto pacífico entre feministas que mulheres brancas exercem poder e privilégio sobre mulheres negras, devido ao racismo estrutural da sociedade, do qual mulheres brancas se beneficiam, por terem muito mais chances do que as mulheres negras de terem participação no patrimônio econômico que durante séculos foi gerado pelas próprias pessoas negras, sob condições de trabalho escravo desumanas, e por não enfrentarem o preconceito social resultante de séculos de estigmatização das pessoas negras. Porém, tal privilégio não existiria quando falamos das relações sociais com pessoas transgêneras. Por exemplo, o fato de as pessoas trans* encontrarem barreiras estruturais e sistêmicas para alterarem seus documentos e poderem ter direito ao seu nome e ao seu gênero e, por causa disso, serem excluídas do mercado de trabalho não implicaria em privilégio para as mulheres cisgêneras, que não enfrentam os mesmos problemas, pois elas não se “beneficiariam” do fato de as pessoas trans* passarem por essas dificuldades.

Comparando esse exemplo ao do racismo, e analisando o argumento, parece que quem defende isso entende privilégio exclusivamente como exercício de poder econômico, em que se possui alguma vantagem financeira sobre alguém. Naturalmente, classes privilegiadas reservam para si o direito de determinar o que é ou não privilégio. A manutenção do significado de privilégio permite às classes privilegiadas impedirem que se questione o próprio sistema que lhes dá poder, em primeiro lugar.

Questionar o poder de classes privilegiadas – incluindo, aí, pessoas cisgêneras – de decidirem acerca do significado de privilégio é vital. Mas hoje não faremos isso. Ao invés disso, aceitaremos, para os propósitos dessa discussão, a definição de privilégio que feministas cisgêneras escolheram como oficial, para demonstrar que, mesmo sob essa definição, ainda encontramos exemplos de privilégio cisgênero.

A marginalização das pessoas trans* diminui o acesso dessas pessoas às escolas, faculdades e universidades e ao mercado de trabalho – e consequentemente diminui a concorrência que as pessoas cisgêneras enfrentam. Isso é uma vantagem econômica – um privilégio, que mulheres cis também exercem. Cabe ressaltar que não se deseja, com essa constatação, culpabilizar as mulheres cisgêneras pela marginalização das pessoas trans*. Os meios de produção são, em sua maioria, controlados por homens cisgêneros, que decidem quem contratam ou não, e que certamente são responsáveis pela exclusão de pessoas trans*. Porém, mesmo não sendo responsáveis por isso, mulheres cisgêneras ainda assim se beneficiam disso.

O mesmo vale para abrigos para mulheres vítimas de violência e estupro. Mulheres trans* são desproporcionalmente mais afetadas por esse tipo de violência, e teoricamente haveria uma ocupação grande desses espaços por elas, diminuindo as chances de mulheres cisgêneras que sofressem a mesma violência de encontrarem lugar nestes espaços. A atitude de banir mulheres trans* desses espaços sem levar em conta os riscos sofridos por elas – atitude essa apoiada por muitas feministas – resulta em maior chance de mulheres cisgêneras encontrarem lugar nesses espaços se precisarem.

Quanto ao próprio Feminismo em si, impedir o acesso de mulheres trans* aos espaços feministas resulta em mais tempo, energia, dinheiro, esforço e atenção dedicados às pautas específicas das mulheres cisgêneras. Aceitar mulheres trans* nestes espaços significa, para muitas feministas, ver todos esses recursos sendo dedicados em menor quantidade às pautas delas, para serem dedicados às pautas específicas de toda uma classe de mulheres. Isso também pode ser entendido como vantagem competitiva e privilégio.

Questionar a existência de privilégio cisgênero é silenciar as denúncias de opressões vividas por pessoas trans* e se isentar de responsabilidade. É impedir que o lugar de discurso das pessoas cisgêneras seja apontado. É negar que a sociedade e a cultura são cis-supremacistas. É desqualificar a existência de cissexismo. Cissexismo é o fundamento teórico para a transfobia. Não reconhecer a existência de privilégio cisgênero está na base da transfobia.

Que nesta Semana da Visibilidade Trans*, e em todas as demais semanas do ano, se reconheça a existência da transfobia, e que privilégio cisgênero está na base dela. Que lutemos contra a transfobia com coragem.


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