Do caso policial ao acontecimento #somostodasverônica

Texto apresentado na mesa temática 65 Militância em rede: sentidos em disputa sobre mulheres coordenada por Aline Fernandes de Azevedo Bocchi no XI Congreso Internacional de la Asociación  Latinoamericana De Estudios Del Discurso (ALED).

Verônica Bolina ficou conhecida por ter fotos divulgadas pela mídia e em redes sociais. Verônica, que é travesti, aparece com os seios à mostra e com o rosto visivelmente desfigurado de hematomas. Em outra imagem, ela aparece deitada, também despida da cintura para cima e com uma calça rasgada na região nas nádegas; ao lado aparece um policial portando uma arma. Ambas as imagens foram tiradas dentro de uma delegacia.

Comparando com outras imagens de Bolina, pode-se presumir que seus cabelos foram raspados, também na dependência do distrito policial. Verônica havia sido acusada de agredir uma idosa. Outra foto mostra o rosto de um carcereiro ferido com um pedaço de sua orelha decepada, fruto de uma luta corporal com Verônica. Diversos portais de notícias noticiaram o caso.

Depreende-se que tais agressões, tanto do carcereiro anônimo quanto de Verônica, decorreram de uma luta entre ambos dentro da delegacia. Não se sabe, contudo, as circunstâncias exatas que motivaram ambas as agressões. As imagens “falavam” por si mesmas pela evidência do sangue, dos ferimentos e dos hematomas ao mesmo tempo em que eram profundamente opacas quanto às demais circunstâncias que poderiam explicar a sequência de fatos do acontecido.

Não se sabe ao certo onde as imagens circularam pela primeira vez: elas foram “vazadas”. Fotos “vazadas” pela e na internet, em páginas da rede social facebook. E o fato de circularem enquanto fotos “vazadas” em redes sociais determinou o modo como tais fotos foram significadas e interpretadas por meio de distintos gestos de interpretação.

Orlandi (2012) enumera três momentos igualmente relevantes no processo de produção do discurso: constituição, formulação e circulação. Desta forma, o sentido (de determinado discurso) depende destes três processos. Pensar tanto a constituição, formulação e circulação de imagens nos seus aspectos discursivos implica considerar certas especificidades desta materialidade significante.

Propomos pensar a constituição, formulação e a circulação das imagens em seus efeitos no confronto do simbólico com o político – portanto, através de uma perspectiva discursiva. Ainda segundo Orlandi (idem), formular é dar corpo aos sentidos; desta forma, podemos compreender a formulação de imagens a partir de um olhar como prática simbólica que se corporifica em imagem. Para a autora, é interessante compreender o texto como um processo do qual se pode, de modo indireto, ter acesso à discursividade; neste sentido, compreendemos as imagens não como produtos empíricos, espontâneos e pré-existentes, mas enquanto unidades imaginárias. Considerar as imagens a partir desta perspectiva nos permite compreender os processos através dos quais as imagens produzem sentidos.

Quando o caso de Verônica atingiu repercussão nas mídias e nas redes sociais, novos fatos e informações surgiram. As imagens já começaram a clamar sentidos a partir de sua rápida circulação nas redes sociais. Era preciso explicar o acontecimento e o caráter dinâmico das redes sociais permitiu com que novos discursos questionassem as lacunas e evidências em relação a este caso.

Um áudio foi divulgado pela coordenadora de Políticas para a Diversidade Sexual do Estado de São Paulo. Nele, a coordenadora admite o fato de que todos estavam preocupados com a integridade física de Verônica. Neste mesmo áudio, Verônica afirma não ter sido torturada pelos policiais, apenas “contida”. Ela afirma que “Eles tiveram que usar as leis deles para me conter. Não teve, de nenhuma forma, tortura. Só fui contida, não torturada”.

Contudo, a condição de produção deste áudio foi questionada, também a partir de sua circulação nas redes sociais. Segundo a Defensoria Pública, responsável pela defesa de Verônica, em notícia veiculada pelo portal IG, tal entrevista em áudio não ocorreu em um local reservado, de acordo com o que está previsto na legislação. Desta forma, a defensoria acredita na possibilidade dos policiais terem coagido a fala de Verônica, inclusive “barganhando” redução de pena e/ou violência através de seus depoimentos. A defensoria ainda ouviu dos policiais que, por Verônica ter arrancado a orelha do carcereiro, a agressão saiu “barato”. Afirma ainda acerca da existência de “agressões desproporcionais e exposição indevida”:

As fotos evidenciam, pelo menos, uso desproporcional de força. O que se alega é que foi utilizada força para contenção, mas conter não é espancar. Além disso, a divulgação da imagem dela machucada e com seios à mostra demonstra uma tentativa de exposição indevida. Caberia ao Estado proteger sua integridade física e moral. Se não foram os policiais quem divulgaram as fotos, foram ao menos coniventes com essa divulgação. (Portal IG, http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/sp/2015-04-16/veronica-bolina-travesti-presa-em-dp-foi-agredida-varias-vezes-por-policiais.html)

Outras falas de Verônica posteriormente desmentem o que ela mesma havia dito nesta primeira entrevista em áudio. Ela admite, nesta outra oportunidade, que tinha sido de fato agredida – e não apenas “contida” – pelos policiais.

A disputa por sentidos começa a se delinear ainda mais. Se disputa os sentidos sobre o caráter das agressões contra Verônica: elas seriam mais ou menos explicáveis, esperadas e então, justificáveis. Ou mesmo desejáveis. Tais sentidos se defrontam com a materialidade significante das imagens.

As “leis deles”, como afirma Verônica em sua primeira fala, anuncia a ambiguidade e equivocidade de toda a situação narrada; tal expressão, com tão poucas palavras, condensa inúmeros outros enunciados que significam e se relacionam tanto ao contexto imediato como mais amplo.

As “leis deles” é um ponto de deriva de distintas interpretações. As “leis deles” aparecem opacificadas: qual é a “lei” “deles”? Quem são eles? O Estado, seus agentes? Quais leis? É possível interpretar diversas disjunções: entre a lei do Estado, oficial, e a lei dos agentes efetivos do Estado, os policiais; “[d]eles”, suas leis.

A lei, que deveria ser una, é cindida, assim como seus agentes de representação e suas possibilidades de exercício do poder em certos contextos. Existiriam distintas leis de acordo com distintas circunstâncias? Até que ponto a aplicabilidade da lei é justificada para “conter” Verônica através de atos de poder legais? Qual é o limite entre a contenção e a tortura, o abuso e o exercício legítimo da violência do Estado? Até que ponto a justificativa do poder legítimo do Estado é passível de ser sustentada neste caso – a partir da existência de tais imagens, em suas materialidades significantes?

A justificativa da soberania do exercício do poder do Estado é posta à prova de interpretação frente à materialidade significante das imagens. E o gesto de interpretação que significa as imagens é decisivo para estabelecer se o uso de força pelos agentes carcereiros é tido como justificável ou não; se houve abuso de poder ou não; se houve tortura ou não. As imagens tem efeito de discurso e consequências sobre a própria formulação de discursos.

Dois posicionamentos começam a ganhar contornos. Militantes dos direitos humanos argumentam que Constituição Federal do Brasil tem o dever de assegurar o respeito à integridade física e moral de todo preso sob custódia do Estado, como visto em um trecho da Revista Fórum :

Direitos Humanos são direitos de todos pessoas humanas, incluindo espancadores, assassinos, estupradores e usuários de crack. Se Verônica estava em surto desencadeado por uso de crack, ou um surto psicótico, isso apenas evidencia que é necessário assistência psicológica e tratamento humanizado […] A polícia não tem direito de espancar e torturar uma pessoa, mesmo que seus crimes sejam extremamente bárbaros. Isso vale para todas as pessoas e não relativizo direitos… Ao contrário do que insinuam, não acho que Verônica não deve ‘pagar’ por seu crime, o que eu acho é que ela deve ser julgada, com direito de se reunir em privado com seus advogados, com direito de defesa e tratamento humanizado, sem sofrer espancamentos. (Revista Fórum http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/04/veronica-bolina-e-dona-laura-nada-justifica-agressoes-de-policiais/)

Neste discurso, a formulação de tais imagens seria mesma da ordem do incompreensível e/ou inaceitável, pois o olhar interpretativo que corporifica tais imagens é outro; mas é só a partir do momento em que são vazadas e circulam pela internet que se tornam objetos de críticas e denúncia política.

Qual o sentido de fotografar e expor um ato criminoso desse nas redes? Na maior parte dos casos de violência policial, os envolvidos não fotografam, não exibem e nem compartilham provas da violência como troféu, o que, então, faz com que essa violência seja espetacularizada? Exibida? Ora, a resposta é simples: trata-se de uma travesti, vista como corpo abjeto, que pode ser mostrado, revirado, mexido, tocado, torturado. (Revista Fórum http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/04/veronica-bolina-e-dona-laura-nada-justifica-agressoes-de-policiais/)

O fato de uma pessoa ter sido detida não é justificativa para que seja privada de seus direitos, mas quando se trata de travestis, ainda mais negras, isso pouco importa. Verônica teve sorte de suas fotos caírem na rede, fotos tiradas enquanto ela se encontrava sob custódia da polícia, sorte porque essa exibição violenta acabou por lançar luzes sobre sua situação, a polícia agora precisando pensar muito bem o que faz, a sociedade inteira acompanhando o caso. (Esquerda Diário. http://www.esquerdadiario.com.br/Travesti-e-Negra-e-ter-sido-presa-nao-importa-o-motivo)

Por outro lado, o discurso que justifica ou legitima as agressões sofridas por Verônica nas dependências da delegacia concebe a formulação de tais imagens como compreensíveis na medida em que não são compreendidas pelo próprio discurso como um fato passível de ser explicado (já que são, por si só, auto evidentes) o que gera o efeito de sentido de que tais ferimentos e agressões seriam possíveis de serem negligenciáveis já que não são considerados elementos relevantes; não seriam, de toda forma, resultados de crime.

Desta forma, a circulação e formulação das imagens como da ordem do justificável funciona como evidência de que tais ferimentos sofridos por Verônica decorreram de justiça. Este discurso busca silenciar as interpretações que colocam não apenas a existência de violência contra Verônica como um crime cometido pelos agentes do Estado, mas as especificidades que resultaram do fato dela ser travesti, dando ênfase às acusações de crimes cometidos por Verônica. Se preocupar, portanto, com as “ações que Verônica sofreu” configura uma “inversão de valores”:

O criminoso Charleston, deu lugar à vítima Verônica. Numa absurda inversão de valores, deixam de se preocupar com as ações que Charleston praticou e passam a se preocupar com as ações que Verônicas sofreu. Esquecem do criminosos e passam a enxergar o transexual, como se isso importasse, afinal de contas, criminoso é criminoso, seja ele gay ou heterossexual. A ação praticada pelo agente não interessa mais, mas sim se este possui certas características pessoais como ser negro, homossexual, favelado e a maior delas: NÃO SER POLICIAL, pois nesse caso, a presunção é invertida e envereda sempre para a culpa. A Polícia não é contra gays e transexuais. A Polícia é contra criminosos. Eu não sou contra gays e transexuais. Apenas sou a favor de gays e transexuais corretos […] (Blog do Guy Franco. https://br.noticias.yahoo.com/blogs/guy-franco/nem-todos-sao-veronica-145927127.html)

#SomostodasVerônica é um enunciado que circulou como crítica às violações dos direitos de Verônica. Nesta tomada de posição, nada poderia justificar agressões nas dependências do Estado, ou melhor: nenhuma justificativa do uso de violência Estatal poderia explicar as imagens que estão circulando. Elas são por si só, inaceitáveis. Desta forma, não apenas uma crítica às violações de direito é possível, mas é a própria interpretação que torna viável o direito. A circulação das imagens é compreendida de outra forma. As fotos passam a significar enquanto inaceitáveis através de um gesto interpretativo. Seja a acusação de Verônica de agressão a uma idosa; seja a agressão à orelha do carcerário; nenhuma circunstância poderia justificar as agressões que resultaram em tais imagens.

As imagens de Verônica são opacificadas por este gesto de interpretação: elas se tornam inaceitáveis, as marcas de violência impostas ao corpo de Verônica passam a ser compreendidas como injustificáveis. As marcas só então se tornam visíveis, de outra forma, não mais enquanto “justificáveis”. Produz-se o sentimento de indignação frente a tais agressões ou é o próprio sentimento de indignação que pôde fluir a partir do gesto simbólico. O gesto de interpretação recai sobre as imagens que são significadas a partir de uma ruptura com outro discurso que as significou no momento de sua formulação.

As imagens produzem efeitos de evidência na medida em que sua formulação e circulação enquanto imagens “vazadas” são compreendidas como transparentes. A formulação justificaria sua circulação na mesma medida em que as agressões contra Verônica são justificadas pelo exercício do poder do Estado. E o vazamento – momento contíguo à sua circulação – das imagens funcionou como transparência na medida em que o que se retrata nelas foi significado como da ordem do justificável; do esperado e até mesmo evidente. A prisão de uma travesti em uma ala masculina. Os hematomas. A ausência de sutiã e camiseta. A ausência de cabelos. Ausência de peças íntimas. A calça rasgada que mostra suas nádegas. A posição de humilhação. Nas dependências de uma delegacia de polícia. Podemos compreender a formulação das imagens se dando a partir de um gesto de interpretação que naturaliza todas estas circunstâncias como aceitáveis.

Um gesto de interpretação capaz de desestruturar o olhar de evidência frente a tais imagens foi capaz de produzir redes de compartilhamento, agenciamentos coletivos de subjetividade nas redes: #Somostodasveronica. Agenciamento este que pode ser considerado inusitado frente ao gesto de interpretação que resultou na formulação e circulação das imagens vazadas. A circulação das imagens foi capaz de interrogar as suas condições de formulação a partir de outro gesto de interpretação.

Proponho pensar, desta forma, a enunciação coletiva #Somostodasveronica como um acontecimento capaz de ruptura discursiva com a forma como tais imagens circularam no momento em que foram vazadas ou formuladas. Tal olhar ensejou a criação de outras imagens, como pela página Somos Todas Verônica. Um olhar que procurasse restituir a humanidade de Verônica. Neste olhar, compreender as circunstâncias retratadas nas imagens como banais significaria brutalizar a existência e identidade de Verônica, atestando a negação de direito humanos. Como formas de naturalizar não apenas agressões do Estado a um indivíduo em como qualquer um, mas a violências de caráter especificamente transfóbico.

Referências

ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e Texto: Formulação e Circulação dos Sentidos. Pontes, 2012.


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