Por Lucci Del Santos Laporta.
Eu não sei o que 90% das travestis e minas trans brasileiras vivem na pele. De toda forma, nós que compomos os 10% que não têm a prostituição como única forma de renda possível também sabemos como é estar sozinha no meio de uma multidão. Eu sei o que é ser a única mulher trans do partido, a única mulher trans de uma graduação que, em décadas de existência, nunca formou uma mulher igual a mim. Eu sei o que é ser a única mulher trans do grupo de amigas, porque nos espaços privilegiados (senão de forma econômica, socialmente privilegiados) que eu acesso eu sou quase sempre a única pessoa trans. A única mulher trans dos locais onde já trabalhei e que eu frequento. Eu sei que é ouvir termos como “natural”, “biológica”, “normal” e até mesmo “mulher” como se fossem opostos ao que eu sou. Porque as pessoas cis se consideram melhores do que eu, óbvio. Na cabeça oca de conhecimento e cheia de normas patriarcais delas, elas acham que ser cis é ter “nascido pronto”, elas nem tiveram que se “transformar”. Pobres almas estúpidas, não sabem nada do que são e do que vivem. E, encorajada e naturalizada que é a alienação, até algumas de nós acabam se considerando inferiorizes à gente cisgênera.
Assim, nesse mundo em que tentam nos ensinar que somos feias, erradas, “antinaturais” (como se “ser humano” fosse passível de naturalidade – estudem) e meros objetos de satisfação do fetiche masculino, o que precisamos aprender de fato é o poder do “NÃO!”. Não a tudo o que nos impuseram desde sempre, inclusive a própria identidade cis que tentaram nos fazer assumir. Não à assimilação que os espaços que frequentamos nos induzem a aceitar. “Não precisa dizer que é trans”, eles dizem. “Não precisa estampar na sua testa”, “não precisa ser tão radical”. E não, também, à glamourização que impõem à nossa identidade: “diva!”, “olha, ela parece uma mulher de ‘verdade’!” ou “nossa, eu amo tanto as trans que eu me sinto uma”. Os cis gays são craques nisso aí, mas tem muita cis hétero que segue o bonde.
Então eu sei o que é ser sozinha. Isso não é só sentir solidão, porque isto todo mundo pode sentir. O que eu sei é como é ser diferente de todas/os a minha volta. É saber que o próprio idioma português não tem termos respeitosos para se referir a pessoas como eu, por exemplo. Eu sei o que é ter que usar termos que ninguém conhece e ter ficar explicando. “Cis” é um deles, por exemplo. Porque o não uso desses termos é aceitar e reproduzir uma lógica que me coloca como menos mulher, menos biológica, menos passível do direito a ter as mesmas orientações sexuais que pessoas cis podem ter. Eu acho que eu sei até o que os alienígenas sentirão quando forem postos em contato com os terráqueos. E não é pra ser engraçado, porque eu também acho que os terráqueos vão matá-los e/ou explorá-los se tiverem mais tecnologia do que os seres estranhos. Assim como fazem conosco, as pessoas trans. Assim como fazem com as pessoas negras, com as mulheres cis e as pessoas não-hétero.
E é por isso, travestis e mulheres trans, que precisamos lutar por soberania! Mais do que autonomia sobre nossos corpos; mais do intenção de direitos iguais numa sociabilidade intrinsecamente desigual; mais do que a “tolerância” condescendente das/os cis; mais até do que mera independência econômica e afetiva. Precisamos é de poder! Poder sobre a produção científica, poder sobre os partidos políticos que tiverem compromisso com o combate ao patriarcado, poder sobre o feminismo, poder sobre a sociedade! Para destruí-la da forma que é! Nossa luta deve ser por soberania não só em relação às pessoas cis, mas ao CIS-tema que criaram. Cisgêneros precisam, de uma vez por todas, parar de ter o poder de gestão sobre as nossa existência! É preciso organização e unidade. É preciso transfeminismo revolucionário.