Por Samie Carvalho.
Sobre essa autorização do juiz pra “cura gay” deixa eu relembrar vcs de uma coisa que parece que pouca gente sabe:
TODAS as pessoas trans AINDA são consideradas “doentes” e obrigadas a fazem acompanhamento psicológico compulsório por no mínimo 2 anos para que uma junta de psicólogos “comprovem” que ela é “trans de verdade” pra pessoa ter direitos a TENTAR retificar documentos, tomar hormônios e até fazer cirurgia.
Se um homem cis com seios (ginecomastia) quiser fazer uma mastectomia para retirar deus seios, ok, ele pode. É só marcar com o cirurgião.
Até pode haver um acompanhamento psicológico mas o fato dele ser cis JAMAIS será colocado como empecilho ou fator de dúvida “se a pessoa talvez se arrependerá”. Justamente porque a norma diz que homens não tem seios, logo ele não “sentirá falta” dos seios removidos.
Entretanto…
Se um homem trans quiser fazer o MESMO procedimento, ele precisa passar por esse processo pra ter autorização de terceiros. Pq nesse caso no fundo e num primeiro momento ele nunca é considerado “homem de verdade” e sim uma “mulher confusa”. Logo surgem o questionamento, “e se ela(e) se arrepender?”
O mesmo vale pra mulheres trans.
Outra questão é que muitas pessoas trans são proibidas de adotar crianças por serem acusadas de não serem psicologicamente saudáveis pra criar uma criança. Na prática toda pessoa trans é tratada como uma doente mental crônica.
Todas as cirurgias e hormônios que pessoas trans utilizam foram criados para pessoas cis. Não existem nenhum medicamento específico para pessoas trans.
Mulheres cis com altas taxas de testosterona ou baixas taxas de estrogênio, tomam os mesmos hormônios que as mulheres trans tomam. Estes feitos para a fisiologia de uma mulher cis.
A diferença é que a pessoa trans precisa de autorização, a cis não.
A testosterona dos homens trans, é feita para homens cis com baixa taxa de testosterona. Os homens cis podem tomar sem autorização de psicólogos, os trans não.
A vaginoplastia foi desenvolvida para mulheres cis que nasceram com malformações no genital, como ausência de canal vaginal ou clitóris hipertrofiado. Se uma mulher cis quiser fazer uma vaginoplastia ela pode, as mulheres trans precisam de autorização.
Numa sociedade patriarcal e falocêntrica é inconcebível uma pessoa rejeitar o próprio pênis. E de novo vem os questionamentos sobre um possível arrependimento por parte da pessoa trans.
Pense como a ciência é cisnormativa e nem um pouco neutra na hora de avaliar corpos cis e trans:
Quando uma mulher cis tem seios, ela tem apenas “seios naturais”.
Quando um homem cis tem seios, aí já patologizam e ele passa a ter “ginecomastia”.
Quando um homem cis tem pelos na face, é natural.
Quando uma mulher cis tem pelos na face, aí tem que fazer uma porrada de exame pra detectar alguma doença.
(Isso sem contar as cirurgias compulsórias em bebês intersexo…)
Ou seja, dois pesos e duas medidas. Isso parte do fato de que a sociedade normatiza as identidades cis e patologiza as trans, como se fossem os “anormais”, a isso chamamos de cisnormatização compulsória. Onde toda identidade cis é compulsoriamente tratada como normal (correta) e as identidades trans como um defeito ou erro. Assim como já foi com as orientações sexuais desviantes da heterossexualidade. A raiz do problema é a mesma!
Nesse contexto joga-se no lixo conceitos como autonomia do indivíduo sobre o próprio corpo e direito de auto-identificação. Pessoas trans são tratadas pela medicina e pala justiça como incapazes de terem autonomia sobre seus próprios corpos. Muito parecido com o que fazem com as mulheres em relação ao direito ao aborto. Da mesma forma que temos homens decidindo sobre o corpo das mulheres, temos cis decidindo sobre os corpos trans. E héteros decidindo sobre a sexualidade de homossexuais e bissexuais.
“Mas até o SUS autoriza a operação. Não faz sentido se for considerada patologia.”
Vc pode dizer…
Bem…
O SUS “autoriza” depois que vc passar por todo esse processo compulsório com psicólogos, psiquiatras e endocrinologistas que pode levar no mínimo 2 anos ou mais.
Aí DEPOIS disso, se vc conseguir a autorização, vc espera pela cirurgia. A fila demora no mínimo 8 anos mas a média é pra lá de 12 anos de espera. Muita gente morre sem ter conseguido fazer…
Enquanto isso a pessoa vai sobrevivendo com todo tipo de restrições de direitos e liberdades, uma vez que na maioria esmagadora dos casos elas só conseguem retificar seus documentos (num processo que pode durar uns 2 anos ou mais) DEPOIS da cirurgia.
Agora faz as contas.
Isso tudo, em geral num contexto de estigma social, desemprego, rejeição familiar, perda de amizades, relacionamentos e violências físicas e verbais.
Sem documentos de acordo, a maioria dessas pessoas fica renegada a marginalidade.
Vale salientar por exemplo que no caso dos homens trans a cirurgia genital ainda está em caráter experimental e a maioria dos hospitais não oferecem essa cirurgia. Resta a muitos deles não fazer a cirurgia genital (muitos nem querem) e por isso acabam ficando impossibilitados de retificar seus documentos.
Esqueci de incluir um detalhe importante, todo esse processo custa dinheiro, MUITO dinheiro.
É importante também apontar que esse processo é padrão e praticamente o mesmo no mundo todo, com algumas raras exceções…