Por Beatriz Pagliarini Bagagli.
Em resposta a ideia de que a lei de identidade de gênero, ao retirar TODO tipo de exigência (médica, psicológica, de serviço social, etc) para que pessoas transgêneras retifiquem seus nome e gêneros em documentos oficiais, justificasse um repúdio social acerca das identidades trans em decorrência de um alegado “excesso de liberdade”, como se a luta pelo reconhecimento irrestrito das identidades trans pudesse, paradoxalmente, depor de alguma forma contra as próprias pessoas trans.
Se uma lei de identidade de gênero é aprovada, não importa quanta “repercussão negativa” a mídia tente circular sobre as identidades trans, o direito estará aprovado e não será revogado. Se não temos uma lei de identidade de gênero, o que temos a perder? Nada. Aliás, não temos que medir a régua das nossa lutas e das nossas estratégias a partir da visão distorcida e estigmatizante que a mídia e os reacionários fazem de nós – sob a pena de justamente sermos tão conservadores quanto os reacionários que julgamos combater e assim acabamos por postergar a nossa reivindicação indefinidamente. Não podemos avançar em nossa luta se o primeiro passo que damos em direção a ela nos paralisarmos em decorrência do medo que os discursos reacionários visam impor sobre nós – é uma tática que eles querem impor sobre nós, para que nós nos contentemos com migalhas, com um limite que nós não deveríamos aceitar desde o início.
Engraçado, a Argentina, que é um país extremamente parecido com o nosso em vários aspectos, conta com uma lei de identidade de gênero avançadíssima, uma lei dessa que abole TODO tipo de obstáculo para reconhecimento legal, desde 2011 e nem por isso vemos “escândalos midiáticos” envolvendo pessoas cuja expressão de gênero é pouco usual aos olhos da sociedade cisnormativa. Até onde eu saiba, não aconteceu um hecatombe na Argentina em virtude da aprovação dessa lei. Vale ressaltar que a rigor, toda pessoa trans é uma transgressora da cisnormatividade, por mais laudos que ela busque juntar para ser minimamente aceita. Se lá foi possível, aqui também é. Tampouco vemos escândalos sobre homens que iriam invadir o banheiro feminino para atacar mulheres, por exemplo, fantasia tão recorrente no imaginário radfem, nada disso ocorreu ou vai ocorrer simplesmente porque não passam de fantasias reacionárias que reproduzem estigmas transfóbicos, fantasias manifaturadas unicamente para nos mantermos na condição subhumana. Não podemos achar que esse tipo de imaginário é normal e natural – nossa luta vai justamente na direção de questioná-los. A Argentina aliás foi um país em que teve que pedir desculpas pelos horrores que cometeu contra as suas cidadãs travestis. Não por acaso os dados que nós tanto aludimos aqui em relação à expectativa de vida de travestis serem de 35 anos vem justamente de lá. Não muito diferente do Brasil, talvez a única diferença seja que por lá houve um reconhecimento mínimo da existência desses crimes perpetuados pela anuência do Estado.
O direito à autodeterminação das identidades trans frente ao jurídico não pode ser meramente refutado pelo imaginário depreciativo e estigmatizante acerca da existência de pessoas trans com identidades/aparência não usuais. É uma questão lógica em si, e por isso temos que argumentar a partir disso, eu prefiro acreditar que a lógica está a nosso favor e não contra, o direito é um campo afeito à argumentação lógica e nós temos que nos aproveitarmos disso e não nos rendermos ao pânico irracional suscitado pelos estigmas difundidos em relação às identidades trans; simplesmente porque é algo passível de formalizarmos por meio de um princípio geral de reconhecimento que dará base à lei de identidade de gênero, e a existência da lei traz pra si argumentos bastante fortes de forma que ela sustente a si mesma contra ataques externos. É por meio da argumentação que vamos nos proteger de sensacionalismos baratos e protegermos com isso as nossas leis e direitos. Não precisamos achar que os princípios fundamentais que regem a argumentação de uma lei de identidade de gênero seriam assim, de cara, tão frágeis – em que pese vivermos numa sociedade cisnormativa. Aliás, veja que uma das dificuldades que temos hoje para o avanço dos direitos trans em nosso país se dá em virtude do estigma da identidade travesti: seria mais estratégico a nossa luta se desvincular dessa identidade/palavra para que “todas as pessoas trans” sejam mais aceitas (palatáveis) frente ao olhar da sociedade cisnormativa e tenham o direito a retificação? O pedido de vista do julgamento do STF sobre o reconhecimento das identidades trans sem a realização da cirurgia se deu justamente em virtude do “medo” ou do “desconhecimento” dos juízes em relação à identidade travesti (e não a transexual, que é extensivamente dissecada e controlada pelo discurso biomédico e patologizador).
É um caminho perigoso pois pode continuar excluindo pessoas do acesso ao direito, eu acredito que precisamos, ao contrário, incorporar TODAS as identidades trans, e isso inclui a travesti, e isso inclui a pessoa que “parece homem de saia e quer ter um nome feminino”. A construção de um princípio geral que norteia a lei que queremos deve se dar sob a forma da proposição de abarcar, e não de excluir, sob a pena de tentarmos sustentar nosso direito por meio da exclusão de outras pessoas e reiteração de estigmas. Eu não acredito na estratégia de que excluir a identidade/palavra travesti pode de fato nos beneficiar, isto porque ela continuará agindo como um fantasma, um imaginário do abjeto que irá continuar assombrando a identidade transexual pretensamente legitimada. Por isso precisamos inclui-la, por isso precisamos destruir o estigma, o medo irracional do Outro. Isso é sobre alteridade. Precisamos questionar todos os estigmas, o estigma da travesti que se prostitui, o estigma da identidade de gênero que não julgamos ser “verdadeira” ou “séria” o suficiente.
Será mesmo que a identidade de alguém pode não ser “séria” ou “verdadeira” mesmo, como se isso correspondesse a um fato objetivo, ou não estamos de fato ouvindo o que essa pessoa reivindica de si mesma? Se a tal pessoas que “parece homem” e reivindica um nome feminino em seus documentos… não deveria simplesmente bastar o fato de que essa pessoa reivindique o acesso ao direito jurídico de retificação de nome? Porque isso não basta em si mesmo, porque não levamos a sério essa demanda por reconhecimento em virtude de uma pretensa falta de verdade? Qual a necessidade de buscar uma deslegitimação de sua identidade, uma suposta verdade escondida que deporia contra sua identidade feminina, um “parece homem”, qual a necessidade de “desmascarar” a identidade de pessoas trans e travestis? Qual a necessidade da reprodução desse imaginário a não ser como forma de continuar excluindo demandas por reconhecimento? Se a pessoa trans que não parece “de verdade” suficiente tem um direito efetivado que provém de um princípio geral inquestionável, o que isso muda na sua vida, o que isso poderia fazer de mal à sociedade? Isso porque se trata de um princípio que justifica a si mesmo, ou seja, se trata de um princípio geral que se baseia num entendimento fundamental que temos acerca da autonomia das pessoas sobre suas próprios documentos pessoais.
“Mas e se uma travesti mudar seus documentos e depois se arrepender e quiser voltar a ser homem?” Ora, neste caso é de interesse que não haja novamente nenhum tipo de entrave para que essa pessoa tenha autonomia sobre o nome que irá constar em seu documento, de forma com que ela simplesmente exerça seu direito e retifique novamente seu nome. “Mas e se uma pessoa quiser ficar mudando de nome indefinidamente só pra ‘zoar’?” Ora, essa insistência em imaginar os casos mais absurdos como forma de refutar o princípio geral de autodeterminação só desvela o quanto alguns estigmas transfóbicos ainda estão arraigados. É óbvio que casos esdrúxulos como esse podem ser facilmente contornados por algumas medidas que passam longe (mas muuuito longe) de poder arranhar que seja o princípio geral de autodeterminação. Basta que casos como esses sejam identificados como são: anomalias decorrentes de ações de má fé – de pessoas cisgêneras por definição, vale ressaltar. Agora, eu mesma me pergunto se algum dia isso ao menos iria ocorrer, num cenário mais improvável o possível (afinal, o que levaria uma pessoa a perder seu tempo com isso?).
A questão central que me parece aqui é que os direitos das pessoas trans não podem ser vistos como se fossem tão frágeis a ponto de serem vistos como passíveis de refutação pela existência hipotética e fantasiosa de pessoas cisgêneras que agiriam de má fé. Muito me espanta ter que assinalar isso, ter que assinalar que um direito fundamental não pode ser meramente refutado pela presunção de casos anômalos representados pela ideia esdrúxula de “pessoas que vão mudar seus documentos para fazerem algo de errado/estigmatizante/abjeto” . Isso é simplesmente ultrajante, o fato de que o acesso ao direito de pessoas trans seja associado de forma tão espontânea a ações de má fé é ultrajante e precisa ser urgentemente questionado, denunciado e criticado racionalmente.