Por Inaê Diana Ashokasundari Shravya.
Ontem eu estava conversando com a minha esposa sobre a possibilidade do pai e da mãe de um amigo meu que está à beira da morte por negligência hospitalar processar o hospital, no que isso implicaria, muitas das vezes resultando no abandono do processo pela própria família, não por desdém, mas por ser realmente desgastante – emocionalmente falando – seguir com o processo caso seu filho venha a falecer. Isso é algo um tanto delicado. Pra quem é de fora, que possui um certo distanciamento da situação, a melancolia parece não inferir em absolutamente nada – isso, inclusive, me fez pensar sobre as possíveis relações entre o “vida que segue” e a rotina de trabalho cada vez mais asfixiante, onde o parar pra viver o luto implicaria parar de trabalhar.
A partir disso fiquei ponderando sobre o caso Suzy – fui marcada em inúmeros posts, o que foi realmente exaustivo pra mim. Algumas pessoas me marcaram por sadismo -. A discussão não deveria estar – mas está – girando em torno de “ser contra” ou “em defesa” da Suzy, uma concepção reducionista do problema. Em nenhum momento – pelo menos até onde tive dimensão da discussão – se parou para refletir sobre como o pai e a mãe da criança, que sofreram o trauma da perda, lidariam com a repercussão que isso teve. Retomar um trauma por vontade própria já é pesado. Retomar um trauma contra sua própria vontade pode implicar um agravamento do mesmo, se não gerar novos quadros psíquicos, como a depressão – se já há, pode agravar também esse quadro -. O que me surpreende, é que muitas dessas pessoas que compartilharam de maneira colérica o caso são pessoas que falam sobre como determinadas coisas podem nos acionar gatilhos traumáticos. Teve o caso em que uma mulher postou um áudio do pai dela dizendo o quanto a amava, seguido de uma foto com o pai no instagram, e logo em seguida algumas pessoas comentaram “apaga, me dá gatilho!”. A justificativa se deu em torno de que no contexto brasileiro mais de 5 milhões de crianças sofrem abandono parental. O que há de fato é a naturalização da miséria. Por qual razão o caso Suzy não acionaria gatilhos traumáticos no pai e na mãe da criança vítima de estupro e assassinato, ou mesmo em outras pessoas que sofreram estupro ou assédio sexual quando criança ou adulta, ou mesmo que conhece pessoas próximas que sofreram? Eu fui vítima de dois estupros e em diversos comentários desses posts que me marcaram eu tive que responder a indagações iracundas como “você já sofreu estupro? Só quem já sofreu sabe“, sendo que as pessoas que diziam isso não sofreram estupro, e eu mesma, que sofri, tive que lidar com esses gatilhos traumáticos prezando a minha saúde mental.
Ainda na esteira dos absurdos, me deparei com (anti-)feministas radicais – um movimento feminino de direita – contentes com o caso, pois isso significaria que a ”teoria” delas está certa – a “teoria” se resume a dizer que “mulheres trans seriam homens fantasiados de mulheres que invadem espaços femininos para realizar estupros”, o que nem pode ser considerado teoria, na real [1]-. Ficar contente com uma situação de estupro e assassinato pois provaria sua “teoria”? Me custa compreender, por uma questão de sensatez, onde que isso não seria absurdo. Além do mais, tomar a exceção como regra é ingênuo, ainda que neste caso me soe de má fé mesmo. Isso talvez não seja nenhuma surpresa se lembrarmos daquela advogada que se proclama “feminista radical” que tentou criar popularidade em cima do caso da jovem vítima de estupro coletivo em 2016. A exposição feita da jovem pode ter repercussões negativas – e provavelmente teve – na vida dela.
Deveríamos abandonar o enfoque sensacionalista [2] (que seria “mulheres trans cometeriam estupros?”) e nos voltarmos ao que de fato importa: estamos num sistema social onde a cultura do estupro [3] e da pedofilia permanece intacta. Aliás, a pedofilia se encontra tão enraizada em nossa sociedade, que expressamos aversão a tudo aquilo que seja velho [4] (“as crianças são o futuro do país” e “quem não gostaria de ter uma pele sempre jovem?” ou a música “Forever young” do Alphaville com o refrão “Pra sempre jovem, eu quero ser pra sempre jovem“, a formação de casais heterossexuais infantis em festas, e por aí vai), notável em sutilezas como “pele de bebê” pra se referir a uma pele macia e que incita ao toque, ao passo que uma “pele enrugada” provocaria um distanciamento por repulsa. O caso Suzy também deveria nos impulsionar a retomar a discussão sobre educação sexual – aquela que foi ignorada com a reação “transem bastante” diante da fala da Damares sobre castidade no carnaval -, sobre abolicionismo penal – pra se falar sobre população penitenciária e punitivismo, por exemplo -, sexismo, de maneira mais radical em vez de nos atermos aos sintomas do problema. O que houve, entretanto, foi gente aproveitando o caso para expressar transfobia escancaradamente. Ouvi relatos de mulheres trans e travestis que foram chamadas de ”pedófila” na rua, algumas até mesmo foram ameaçadas de sofrerem linchamento – muitas delas chegaram a relatar pesadelos – . Eu mesma tenho notado olhares mais estranhos do que o habitual nesta última semana. Ou seja, já não obstante sobrevivermos no país que mais mata mulheres trans e travestis no mundo, agora temos de lidar com um espectro que não faz parte da nossa constituição enquanto seres humanos. Talvez fosse o caso aqui de também discutirmos sobre mídia e representatividade.
O facebook tem esvaziado significativamente o diálogo e a discussão, além de ter fomentado uma forma de compulsoriedade da opinião – o que talvez esteja vinculado à síndrome de FOMO (fear of missing out / medo de ficar por fora) em alguma medida, assim como à aversão pela aversão, como ocorre com os famigerados haters – e ter provocado um certo padecimento também. O diálogo se tornou um monólogo onde alguém diz algo e as demais pessoas reagem com “fada sensata” ou “cancelada”. A discussão se tornou sinônimo de ataque pessoal. Em ambos os casos predominam o personalismo e a falta de argumentos. Talvez este seja o momento de também discutirmos sobre o uso das redes sociais e de como inferem no mundo real, ou seja, como conciliar tecnologias informativas e responsabilidade social, assim como compreender o uso feito das tecnologias informativas dentro de um contexto em vez de um simples “curtir/dar like” ou “compartilhar”. Talvez a repercussão desse caso nas redes sociais sirva para compreendermos que a diferença entre virtual e real é socialmente fundamentada, e muitas das vezes, ideologicamente orientada.
Notas
[1] Como é possível de se notar mediante qualquer análise mais rigorosa desse movimento, suas afirmações não possuem sustentação alguma, são enviesados pelo senso comum, muitas das vezes aderindo à falácia do apelo popular. Vide a noção de biologia que se costuma utilizar contra a existência trans, ou mesmo o que chamam de teoria, que na verdade é uma ideia. Pra esclarecer um pouco mais, a teoria seria um conhecimento especulativo, ao passo que a ideia seria uma imagem que se tem a respeito de algo. Acontece que as imagens que formulamos sobre o mundo decorrem de um imaginário social, que pode ser conservador – mantém um regime de organização das coisas vigente – ou utópico – busca alterar um regime de organização das coisas vigente -. Neste caso, a imagem que têm sobre as mulheres trans é sustentada única e exclusivamente pelo sexismo. Daí eu dizer que são antifeministas, pois o feminismo combate qualquer forma de expressão do sexismo, seja a divisão ou a hierarquização sexual. As “feministas radicais”, enquanto um movimento feminino de direita, são ideólogas de gênero, pois visam conservar a imagem que se tem sobre o gênero dentro do patriarcado.
[2] Eu poderia dizer que o enfoque é transfóbico, mas aí estaria deixando de lado os textos feitos por pessoas ignorantes, que não necessariamente têm interesse em promover transfobia, ou seja, a aversão a pessoas trans. Cabe lembrar que, por as estruturas de nossa sociedade serem alicerçadas sobre transfobia, nos depararemos com situações que a expressam, como foi o caso. A diferença é que há pessoas que reproduzem transfobia por ignorância, não por interesse próprio.
[3] Não há dúvidas sobre isso quando nos deparamos com um homem cis afirmando que a repórter que o entrevistava não merecia ser estuprada se tornando o presidente do Brasil em 2019. Isso para não mencionar os “estupros corretivos” que mulheres lésbicas e transexuais sofrem, no caso do primeiro grupo sob a alegação de que “elas devem ser mulheres”, ao passo que no segundo grupo a alegação é “não quer virar mulher? Então toma!”. Sobre o segundo grupo, essa foi uma experiência pela qual eu e outras mulheres trans e travestis mais passaram. Ser mulher, cis ou trans, no Brasil implica sofrer violência sexual.
[4]A esse tipo de aversão se costuma chamar gerontofobia.
Rio de Janeiro, 11 de março de 2020