Texto de Luísa Amaral.
Desde que as pessoas transgêneres passaram a se organizar e lutar por mais direitos e condições de vida mais dignas, elas têm enfrentado inúmeros obstáculos. Entre setores da comunidade médica, fundamentalistas religiosos e grupos políticos conservadores, são diversos os grupos que têm se mobilizado para negar as identidades trans e impedir que indivíduos transgêneres conquistem direitos e tenham acesso a serviços sociais essenciais como, por exemplo, tratamento médico adequado.
O mais inusitado desses grupos consiste em setores reacionários do feminismo radical que se apropriam do discurso feminista para lutar contra o reconhecimento das identidades trans e contra diversas legislações benéficas e necessárias para indivíduos transgêneres.
Conhecidas internacionalmente como TERFs (acrônimo em inglês para “Feministas Radicais Trans-Excludentes”), elas referem a si mesmas como “Críticas de Gênero”, dizendo que o que importa apenas é o sexo biológico, negando a existência de uma identidade de gênero e afirmando lutar pela abolição do gênero.
As TERFs geralmente definem “homens” como “machos humanos adultos” e “mulheres” como “fêmeas humanas adultas”. Assim, sob o pretexto de abolir o gênero elas pretendem atrelá-lo a características sexuais arbitrárias (geralmente cromossomos ou genitais) de forma estritamente binária que além de ser regressiva e transfóbica vai na contramão da própria biologia, que tende cada vez mais a ver o sexo biológico como um espectro.
Sendo assim, as pessoas trans seriam indivíduos mentalmente doentes vivendo mentiras, ilusões. Na visão das TERFS, as mulheres trans, ou “machos que se identificam como trans”, na terminologia delas, se transformam em uma ameaça e uma ferramenta do patriarcado, machos tentando usar uma identidade feminina para invadir espaços femininos. Enquanto isso, os homens trans, ou “fêmeas que se identificam como trans” seriam vítimas do patriarcado, mulheres que estariam se identificando e procurando viver como homens para fugir da opressão patriarcal.
Mas para entendermos e sermos capazes de criticar melhor a visão das TERFS sobre as pessoas trans, precisamos dar um passo atrás e nos aprofundarmos um pouco no debate em torno do que significa ser homem ou mulher.
O que é uma mulher? O que é um homem?
Primeiramente, é preciso esclarecer um mal-entendido, que é a ideia de que a conceitualização que as TERFS fazem de homens e mulheres como machos e fêmeas humanos seria compartilhada por todas as feministas radicais. Não há uma visão singular sobre o gênero e o sexo compartilhada por todas as feministas radicais.
O feminismo radical é um movimento que surgiu nos Estados Unidos durante os anos 60 como parte da segunda onda do feminismo. A ascensão do movimento surge em um contexto de intensa agitação social que via também a emergência de movimentos radicais atuando em várias frentes. Entre eles se via movimentos estudantis, indígenas, negros e LGBTs, que levantavam questionamentos com implicações sociais profundas.
Ativistas como Shulamith Firestone, Carol Hanisch e Jenny Brown buscaram compreender as origens do patriarcado e da opressão da mulher através de uma perspectiva radical, desenvolvendo diversas teorias e estratégias que seriam elaboradas e gerariam intensas disputas à medida que tanto o debate teórico quanto o ativismo de segunda onda se espalhavam pelos Estados Unidos e pelo mundo.
Um dos questionamentos que emergiu no debate gerado pelo feminismo radical é a origem da mulher como classe política. Esse questionamento foi fortemente influenciado pela análise de classe materialista do marxismo, produzindo o que seria um análogo feminista das teorias marxistas. Muitas aderentes do movimento apresentavam a posição de que a mulher seria uma classe criada pelo patriarcado e definida em relação a sua subordinação ao homem. Também foi introduzida a visão de que a opressão patriarcal seria a opressão originária que seria o modelo para as outras formas de opressão institucionalizadas.
Shulamith Firestone, uma das teóricas mais influentes do movimento, argumentou em sua obra “A Dialética do Sexo” que a opressão patriarcal era baseada no controle das funções reprodutivas da mulher, o que significaria que a opressão sofrida pela mulher teria uma base biológica. Ela argumentou também que as mulheres apenas deixariam de ser oprimidas quando elas se revoltassem e tomassem controle de sua capacidade reprodutiva, o que em sua visão seria apenas possível quando novas tecnologias permitissem que a reprodução não fosse mais dependente do aparato biológico das mulheres. De acordo com ela, essa era a condição para o fim da opressão patriarcal, que também seria o fim da distinção entre homens e mulheres.
Elaborações feitas a partir dessa visão seriam usadas futuramente por TERF’s para negar não apenas a identidade de indivíduos transgêneres como também para negar a opressão sofrida por mulheres trans. De acordo com elas, o fato de que as mulheres trans não possuem um aparelho reprodutivo feminino implicaria que elas não poderiam ser vítimas da opressão patriarcal, já que a base de tal opressão seria biológica. Negar a base biológica para tal opressão seria anti-materialista de acordo com elas.
Ironicamente, uma análise das condições materiais das vidas das mulheres trans mostra que a ausência de aparelho reprodutivo feminino não impede que elas sejam sujeitas a diversas formas de opressão patriarcal como discriminação no local de trabalho, abuso doméstico e assédio sexual entre outras.
Além do mais, reconhecendo as categorias “mulher” e “homem” como identidades socialmente construídas, algumas feministas radicais conhecidas e mesmo admiradas por muitas TERFs têm reconhecido as identidades trans como válidas. Um exemplo é a feminista radical estadunidense Catharine Mackinnon, que disse: “Eu sempre pensei que eu não me importo em como alguém se torna um homem ou uma mulher; não importa para mim. É apenas uma parte de sua especificidade, da sua singularidade, como da de todo mundo. Qualquer pessoa que se identifique como uma mulher, que queira ser uma mulher e que ande por aí sendo uma mulher, é uma mulher no que me diz respeito”.
Mckinnon também se manifestou contra o escândalo em torno do acesso a banheiros femininos por mulheres trans. Em suas palavras: “Muitas mulheres trans saem por aí sendo mulheres, quem imagina, e de repente se espera que nós nos importemos que elas estão usando os banheiros femininos. Lá estão elas no próximo compartimento com a porta fechada e nós devemos nos sentir ameaçadas. Eu não me sinto. Eu não me importo. A esse ponto, eu agressivamente não dou a mínima”.
Outro exemplo é Andrea Dworkin, feminista radical estadunidense que além de ser a favor dos direitos trans e de acreditar que todas as pessoas trans deveriam ter acesso a serviços médicos relacionados a transição, também afirmou que o trabalho com transexuais e estudos na formação da identidade de gênero de crianças colocam em cheque a ideia de que o ser humano seria estritamente dividido em dois sexos, posição esta que vai contra o binarismo sexual das TERFs.
Ao invés de adotar tais perspectivas, elas preferem se apegar a uma biopolítica regressiva que atrela as categorias “homem” e “mulher” a características puramente biológicas, geralmente seguindo um modelo estritamente binário que vê pessoas intersexuais como anomalias que não afetam esse binarismo.
De acordo com elas, o gênero consistiria apenas em papéis sociais criados pelo patriarcado com o objetivo de oprimir as mulheres. Assim, elas acreditam que os papéis de gênero e a identidade de gênero deveriam ser abolidos, mas a divisão sexual binária mantida, assim como legislação baseada no sexo. Essa visão apresenta inúmeras falhas.
A primeira delas é que o gênero vai além de papéis sociais reforçados pelo patriarcado, ainda mais quando se considera a existência de identidades de gênero alternativas em sociedades indígenas que dificilmente poderiam ser chamadas de patriarcais. A segunda é que ela nega as identidades transgêneres, já que o que importa para elas é apenas o “sexo biológico”. Além do mais, a abolição de papéis de gênero pode ser efetuada sem negar a identidade de gênero de indivíduos transgêneres, o que ironicamente, seria uma imposição de gênero, e não uma abolição do mesmo.
O que elas chamam de abolição de gênero é apenas uma abolição do conceito de gênero, não do gênero em si. Categorias como “homem” e “mulher” são categorias de gênero, mesmo quando atreladas puramente a características biológicas. E atrelar o gênero a características sexuais arbitrárias é exatamente o que querem setores reacionários da sociedade.
E mesmo supondo que apenas as categorias de gênero com base biológica fossem usadas, não há consenso na biologia em relação a como categorizar o sexo. Ao longo do tempo e à medida que novas descobertas foram feitas, cientistas foram desenvolvendo novas categorias e novas maneiras de definir essas categorias.
Como já mencionado, cada vez mais biólogos tem passado a ver o sexo como um espectro sem fronteiras claras entre as diferentes categorias, visão que tem ganhado cada vez mais visibilidade através de estudos e de publicações em revistas científicas de renome como a Nature e a Scientific American. De qualquer forma, a questão do gênero vai muito além da biologia. Mas o debate que ocorre na biologia sobre como entender e classificar o sexo mostra que mesmo nos mantendo no campo da biologia, a visão das TERFs é retrógrada e simplista.
O que é uma pessoa transgênere? Teorias e visões citadas por TERFs
Se na visão das TERFs as “mulheres” e “homens” são definidos por certas categorias sexuais arbitrárias como a presença de genitália, sistema reprodutivo ou cromossomos e as pessoas trans não são pertencem realmente ao gênero com o qual se identificam, então o que é uma pessoa trans? O que leva alguém a transicionar?
As TERFs desenvolveram e adotaram diversas teorias para tentar explicar esse fenômeno de maneira que seja condizente com a sua visão de mundo. A maior parte desses esforços tem como objetivo negar a identidade de mulheres trans ou de trans não-bináries que foram designadas como homens ao nascer, que são vistas por elas como uma ameaça e se tornam o alvo principal de sua transfobia.
Uma teoria das TERFs que se aplica a todas as pessoas trans é a ideia de que o ativismo trans estaria pregando que certos traços de personalidade ou preferências implicariam que um indivíduo pertence a um determinado gênero. Uma pessoa que teria uma personalidade “masculina”, por exemplo, e que tem gostos considerados masculinos por uma certa cultura seria considerada como pertencente ao gênero masculino.
Sendo assim, uma garota que gosta de artes marciais e que tem uma personalidade afirmativa ou um garoto que gosta de vestidos e maquiagem poderiam ser levados a acreditar que são transgêneres e decidir transicionar, já que o seu gosto e comportamento não seriam condizentes com o gênero que lhe foi atribuído. Resumindo, essa teoria consiste na crença de que a base para a transgeneridade é a identificação com estereótipos associados ao gênero oposto.
Algumas TERFs chegam a afirmar sem base alguma que crianças e adolescentes que agem de maneira que não é geralmente associada ao seu gênero estão sendo aliciadas por ativistas trans que os convencem de que eles também são transgêneres.
Essa teoria é claramente absurda. Entre indivíduos e ativistas trans há várias visões diferentes sobre o que é o gênero e o que torna uma pessoa transgênere, mas nenhuma dessas visões corrobora com essa narrativa. De acordo com muitos profissionais de saúde e ativistas trans, a identificação com características e atividades associadas ao gênero oposto ao que foi atribuído a um indivíduo ao nascer pode ser um indicativo de que esse indivíduo é trans, mas essa identificação não significa por si só que esse é o caso e não é o componente determinante da transgeneridade.
E como sustentar essa visão quando tantas pessoas trans, ativistas ou não, não se comportam de maneira associada ao gênero com o qual se identificam? É o caso de mulheres trans “masculinas” ou homens trans “femininos” cuja existência é ignorada (ou debochada) por aqueles que apresentam essa visão. E além de negar as identidades des indivíduos transgêneres e apresentá-los como pessoas confusas e iludidas, essa visão também é usada para acusar as pessoas trans de estarem reforçando estereótipos de gênero.
É claro que existem pessoas trans que se comportam de acordo com os estereótipos do gênero com o qual se identificam. Mas não há também várias pessoas cis cujo comportamento se enquadra nos estereótipos de seu gênero? E se esse é o caso, por que criticar apenas as pessoas trans por fazê-lo senão para justificar a transfobia? Além do mais, como já mencionado, há várias pessoas trans que se comportam de forma nem um pouco estereotipada, pessoas que são frequentemente zombadas pelas TERFs e taxadas de “transmodinhas”.
Outra teoria frequentemente pregada pelas TERFs que se aplica independente do gênero atribuído ao nascer é que a transição seria o produto da homofobia/lesbofobia internalizada. De acordo com essa teoria, lésbicas e gays estariam transicionando para o outro gênero por não se sentirem confortáveis com relações entre pessoas do mesmo gênero, mudando assim de gênero para poder ter relações “pseudo-heterosexuais” (já que elas continuam vendo pessoas trans como pertencentes ao gênero que lhes foi atribuído ao nascer).
Aqueles que pregam essa teoria frequentemente afirmam também que essa é uma maneira de evitar o preconceito, apresentando uma visão na qual a transfobia não existe ou na qual essa seria uma opressão cujo peso é menor do que o da homofobia/lesbofobia.
É claro que tal teoria cai rapidamente quando se analisa as vidas e experiências das pessoas trans. Além de grande parte das pessoas trans serem homossexuais, bissexuais ou pansexuais, muitos indivíduos transgêneres viveram como gays ou lésbicas antes de se assumirem como trans. E basta perguntar a essas pessoas quantas delas se sentem menos discriminadas como transgêrenes do que eram antes para colocar em evidência o quão absurda é a ideia de que a transição seria uma forma de evitar preconceito ao escapar da homofobia/lesbofobia.
Quanto a visão das TERFs em relação a homens trans ou trans não bináries que foram designados mulheres ao nascer, estes indivíduos são geralmente vistos como vítimas do patriarcado. Ao problematizar (corretamente) as formas que o patriarcado afeta as mulheres ao colocá-las em uma posição subjugada, ao expô-las a violência sexual e a objetificação e ao incutir diversas neuroses em relação aos seus corpos, elas frequentemente concluem (erroneamente) que tais indivíduos seriam mulheres que estariam se identificando como transgêneres e transicionando como forma de escapar da opressão patriarcal.
Sendo assim, tais pessoas seriam vítimas do patriarcado que estariam buscando escapar dessa opressão ao tentar fugir da sua condição de mulher ao invés de se organizar e lutar contra a opressão patriarcal, ou seja, irmãs e companheiras perdidas para a “ideologia trans”.
Essa perspectiva tem a pretensão de se solidarizar com esses indivíduos ao mesmo tempo que ela só se sustenta ignorando as narrativas deles próprios sobre as suas experiências, seus corpos e suas identidades, infantilizando-os ao tratá-los como pessoas que não sabem o que seria melhor para suas próprias vidas e rejeitando as soluções que esses indivíduos buscam para as questões que os afetam.
Quando se trata de mulheres e trans não bináries designadas como homens ao nascer, elas apresentam uma série de teorias e visões extremamente degradantes, que geralmente apresentam esses indivíduos como ameaças as mulheres.
Uma das perspectivas mais danosas e populares sobre as mulheres trans que influenciou o pensamento das TERFs é apresentada no livro “O Império Transexual”, escrito em 1979 por Janice Raymond, TERF estadunidense que contribuiu para a retirada de acesso a serviços médicos para pessoas trans durante o governo conservador de Ronald Reagan, embora ela não tenha sido a primeira a articular tal perspectiva.
Nesse livro, Raymond parte do pressuposto já apresentado nesse artigo de que estereótipos de gênero seriam a causa primária da transexualidade (ela não usa o termo transgênero), que buscaria moldar pessoas e transformá-las em uma falsa versão do “sexo oposto” baseada em estereótipos. Essa seria uma falsa solução de acordo com Raymond, que afirma (assim como grande parte das TERFs) que se não houvesse estereótipos de gênero as pessoas poderiam se comportar como quisessem sem que houvesse a necessidade de transicionar.
Sendo assim, o sujeito transexual seria uma criação da medicina patriarcal que busca reforçar os estereótipos de gênero e fortalecer o patriarcado ao mesmo tempo em que cria uma forma para “homens” invadirem espaços femininos disfarçados de mulheres e gera lucro para uma série de profissionais e indústrias como, por exemplo, a indústria farmacêutica. O conjunto de indústrias, profissionais e instituições envolvidos no processo de transição de uma pessoa transexual é o que ela chama de “O Império Transexual”.
Em sua visão, o establishment médico cria e promove vigorosamente a transexualidade, silenciando profissionais dissidentes. Sendo assim, os próprios indivíduos transexuais seriam vítimas coagidas a buscar falsas soluções para problemas mais profundos ao mesmo tempo em que seriam também agentes do patriarcado promovendo a opressão das mulheres, principalmente no caso das mulheres transexuais.
Essa visão demonstra uma ignorância completa da história do desenvolvimento de práticas médicas que lidam com as pessoas trans. Primeiramente, os profissionais que foram pioneiros na promoção de tratamentos como a terapia hormonal e a cirurgia de readequação sexual, profissionais como Magnus Hirschfeld e Harry Benjamin, foram dissidentes dentro do establishment médico que tiveram que lutar para que tais práticas fossem aceitas e implementadas.
Além do mais, os indivíduos trans não foram agentes passivos aliciados por médicos que lhes empurraram tratamentos goela abaixo, muito pelo contrário. As pessoas trans têm historicamente demandado ativamente esses tratamentos, pressionando profissionais de saúde para fornecê-los em nível individual e se organizando coletivamente para lutar pelo direito e acesso a tais medicamentos.
Inclusive, profissionais de saúde têm sido historicamente relutantes em prescrever hormônios ou cirurgias para pessoas trans, contrariando as narrativas que conjuram imagens de doutores sinistros convencendo jovens confusos a se hormonizarem ao menor sinal de inadequação com o seu gênero. Tais profissionais têm também frequentemente reclamado da insistência e urgência com as quais seus pacientes demandam tratamento médico com o objetivo de transicionar.
As barreiras colocadas por profissionais médicos que dificultam o acesso a tais tratamentos são conhecidas como “gatekeeping”, e são uma fonte frequente de frustração para aqueles indivíduo trans que têm que passar por diversas barreiras arbitrárias como longos processos de avaliação psiquiátrica por profissionais que muitas vezes operam sob paradigmas ultrapassados para poderem obter acesso ao tratamento que necessitam.
É importante reconhecer que há sim uma pressão por parte de muitos profissionais de saúde que lidam com pessoas trans para criar uma conformidade em relação a estereótipos de gênero, embora isso esteja mudando. Essa pressão parte principalmente de psiquiatras que julgam se seus pacientes são de fato transgêneres com base na facilidade e disposição que esses pacientes têm em se conformar com estereótipos associados ao gênero com o qual se identifica.
Mas as pessoas transgêneres não são meros cúmplices que se adequam a tais estereótipos sem questionar, e sim, muitas vezes, agentes que resistem ativamente a esse enquadramento questionando tais narrativas, apresentando alternativas e lutando para que tais práticas médicas sejam alteradas. Aliás, a já mencionada existência de pessoas trans que não se conformam com estereótipos de gênero é uma demonstração clara disso.
Outro aspecto da obra de Raymond é a afirmação de que foco da transexualidade é a mulher transexual (que é um homem na visão dela), já que tal “fenômeno” seria algo feito por homens para homens. Dessa forma, os homens trans teriam apenas o propósito de fingir que a transexualidade é uma questão que envolve os dois gêneros.
O foco real seriam as mulheres trans, que de acordo com Raymond estariam “Estuprando corpos femininos ao reduzir a forma feminina real a um artefato, apropriando esse corpo para si mesmas” com o objetivo de “colonizar a identificação, a cultura, a política e a sexualidade feministas”.
E nenhum tipo de mulher trans é mais ameaçadora para ela do que aquela que ocupa espaços feministas, principalmente se ela for uma lésbica. De acordo com Raymond, as mulheres trans que frequentam esses espaços seriam machos que estariam invadindo e “penetrando” em espaços femininos mesmo sem a presença de um falo, sabotando esses espaços e causando divisões internas com a sua presença masculina.
As acusações de Raymond contra as mulheres trans feministas não se limitaram a ataques contra elas como grupo. Em seu livro, Raymond também direcionou uma série de ataques contra Sandy Stone, uma mulher trans feminista que participava de um coletivo musical fundado por lésbicas feministas conhecido como Olivia Records. O caso é um dos exemplos mais emblemáticos de como o ativismo TERF opera.
A controvérsia começou quando ativistas TERFs descobriram que Stone era uma mulher transexual e lançaram uma série de cartas ao coletivo acusando-a de ter se infiltrado no coletivo e de estar provocando a sua destruição com a sua “energia masculina”. Quando os ataques foram lançados, Stone já estava morando há anos com outras participantes do coletivo, que sabiam desde o princípio que ela era uma mulher trans.
Em uma resposta aos ataques, o coletivo negou as alegações a respeito de Stone. Apesar disso, incitadas pelas acusações de algumas feministas, reforçadas após a publicação do livro de Raymond, TERFs começaram a se manifestar contra a presença de Stone no coletivo enviando cartas, causando tumulto em diversas reuniões e chegando a ameaçar violência contra Stone caso ela não saísse do coletivo. Essas ameaças incluíram ameaças de morte.
O auge das ações contra Stone ocorreu durante um show do coletivo em Seattle. Um grupo de feministas trans-excludentes conhecido como Gorgons (Górgonas) havia ameaçado matar Stone caso ela se apresentasse na cidade. Durante o show, membras do grupo apareceram de fato armadas, mas foram desarmadas pela equipe de segurança, que estava em alerta devido as ameaças recebidas.
No fim das contas Stone terminou saindo do coletivo após muito debate para evitar gerar mais problemas. E esse foi o resultado de uma divisão causada não pela presença de Stone, que nunca havia sido um problema para as mulheres com quem ela morava, e sim pelas acusações de TERFs que não a conheciam pelo simples fato de ela ser uma mulher abertamente transexual em um coletivo feminista. Apesar disso, Raymond usou o caso como suposto exemplo do efeito negativo da presença de mulheres trans em espaços femininos.
E hoje ainda vemos a influência do discurso de Raymond e de outros que ecoam as suas posições em discursos que visam pintar mulheres trans como ferramentas do patriarcado que se transformam em falsas mulheres com o aval de uma medicina patriarcal para invadir espaços femininos, discurso esse que cria divisões entre mulheres trans e cis ao mesmo tempo em que acusa as mulheres trans de estar criando tais divisões com a sua simples presença.
Outras teorias sobre as mulheres trans que são frequentemente citadas por TERFs envolvem a ideia de que a sua identidade de gênero nada mais é do que um fetiche sexual, criando assim a imagem de um homem cuja transformação seria apenas a realização de uma fantasia masculina. Aqueles que pregam tais teorias muitas vezes veem mulheres trans como predadores sexuais, e frequentemente as acusam de estarem forçando outras pessoas a participarem de seus fetiches ao exigirem ser tratadas como mulheres.
Dessas teorias, a mais citada por TERFs é a tipologia desenvolvida pelo sexólogo Ray Blanchard em uma série de estudos lançados entre 1985 e 1993 e popularizada pelo psicólogo J. Michael Bailey, tipologia essa que continua popular entre aqueles que querem negar as identidades trans. De acordo com Blanchard, a transição das mulheres trans (a quem ele se refere como homens) é motivada por razões sexuais, e todas elas podem ser classificadas em duas categorias distintas: transexuais andrófilos e autoginefílicos.
“Os” andrófilos, que ele chama de “transexuais homossexuais”, seriam definidos primariamente pela sua atração por homens. Sendo assim, na visão de Blanchard, elas seriam basicamente homens gays extremamente femininos que decidem realizar a transição para encontrar parceiros masculinos. Na teoria de Blanchard, aqueles “homens” pertencentes a essa categoria tendem a ter uma expressão de gênero mais feminina e a passar por um processo de transição mais cedo do que o outro grupo.
A outra categoria consiste em transexuais autoginefílicos, que engloba as mulheres trans homossexuais (heterossexuais na visão e terminologia de Blanchard), bi/pansexuais e assexuais. Blanchard afirma que essas mulheres seriam na verdade homens heterossexuais com uma parafilia cujo resultado é o direcionamento de seu desejo por mulheres para os seus próprios corpos. Assim, o seu desejo sexual estaria centrado na fantasia de seus próprios corpos como corpos femininos, o que provocaria a disforia de gênero e o desejo erótico de tornar-se mulher.
As mulheres trans bissexuais são chamadas por ele de “homens pseudobissexuais”, já que ele afirma que aquelas que pertencem a esse grupo desejam homens puramente pela razão que elas se sentiriam mais mulheres ao serem penetradas por eles, negando que elas possam de fato sentir atração pelo corpo masculino. Já as assexuais seriam aquelas cuja fantasia de habitar um corpo feminino é tão forte que ofusca qualquer desejo por outras mulheres, tornando essas pessoas “eroticamente autossuficientes”.
Essa tipologia e os estudos que a embasam contém inúmeros problemas epistemológicos. O primeiro deles é que os estudos de Blanchard se baseiam apenas em amostras clínicas que podem não refletir as mulheres trans em geral. Além do mais, o número de pessoas envolvidas na amostragem é relativamente pequeno. A credibilidade de tais estudos é também comprometida pelo fato de que os resultados obtidos por Blanchard não foram reproduzidos com sucesso em por outros pesquisadores.
Outro problema com a tipologia de Blanchard é que ao realizar seus estudos, ele dividiu previamente as participantes de acordo com a sua orientação sexual ao invés de criar classificações posteriores a análise, o que já determina previamente a base para essas categorias. Além do mais, ele não faz nenhuma comparação entre as participantes de seus estudos e mulheres não-transexuais. Essa lacuna metodológica implica a possibilidade de que ao desenvolver a categoria de transexuais autoginefílicos, Blanchard poderia estar patologizando formas de desejo e expressão sexuais que seriam consideradas normais caso fossem observadas em mulheres cis.
O pesquisador Charles Moser, por exemplo, conduziu um estudo no qual ele entrevistou um grupo de mulheres cis com o objetivo de investigar se elas se sentem sexualmente excitadas ao pensarem em sua própria imagem como mulheres. Ele concluiu que 93% das mulheres entrevistadas experienciam tal excitamento ocasionalmente e 28% frequentemente.
Além do mais, a teoria de Blanchard afirma que todas as mulheres trans se encaixam em duas categorias completamente distintas, e que não há exceções. Uma breve análise das experiências das mulheres trans demonstra que muitas delas não podem ser enquadras claramente em nenhuma dessas categorias, fato óbvio corroborado por estudos posteriores.
Aliás, nos próprios estudos realizados por Blanchard, ele encontrou indivíduos que desafiam as suas próprias categorias, mas ao invés de questionar as categorias em si ele concluiu que esses indivíduos estariam representando as próprias experiências de maneira incorreta. Ao utilizar uma metodologia que simplesmente desconta as exceções ao invés de incorporá-las ele torna a sua teoria infalsificável e, portanto, anticientífica.
Também é facilmente constatável que algumas das afirmações feitas por ele são absurdas, a não ser que se ignore completamente as experiências das mulheres trans que contradizem essas constatações. Um exemplo é a afirmação de que as mulheres trans bissexuais não sentem de fato atração pelo corpo masculino, o que as tornaria na verdade pseudo-bisexuais. Além de contradizer as experiências das mulheres trans bissexuais, um estudo realizado pelo próprio Blanchard mostrou níveis de androfilia em mulheres trans bissexuais superiores ao nível de ginefilia apresentado por esse grupo.
Além de tudo, Blanchard não investiga outras hipóteses e interpretações possíveis para os seus dados, como, por exemplo, a hipótese de que a excitação pela ideia de ter um corpo feminino poderia ser causada pela disforia de gênero ao invés de ser a sua causa. Acredito que tal hipótese seria muito mais plausível.
Por fim, vale relembrar que Blanchard é um conservador homofóbico, tendo já afirmado que ele classificaria o sexo homossexual como anormal. O fato de que TERFs estão dispostas a aceitar sem maiores questionamentos teorias mal fundamentadas articuladas por conservadores desde que tais teorias sirvam como munição contra pessoas trans diz muito sobre elas.
Outra teoria com sérias falhas metodológicas que tem sido usada por TERFs como munição em sua cruzada contra a transgeneridade é o conceito de disforia de gênero de início rápido, abreviada como RODG (acrônimo baseado no nome do conceito em inglês). Essa teoria afirma que está surgindo um tipo de disforia de gênero completamente distinto daquele que é reconhecido pela psiquiatria.
Essa suposta disforia, que estaria afetando jovens adolescentes, seria caracterizada por se desenvolver subitamente em pessoas que nunca haviam sentido ou apresentado sinais de disforia, e seria supostamente causada por uma influência social exercida através da mídia, de redes sociais e do meio social desses jovens, levantando assim a hipótese de um contágio social. Outra característica dela seria o declínio da saúde mental desses jovens e da relação entre eles e seus pais após o início da transição. Também foi notado um aumento no número de pessoas trans que foram classificadas como pertencentes ao gênero feminino ao nascer.
Antes de abordarmos esses argumentos, precisamos entender as origens do termo e da teoria em si. O termo se originou em três sites: 4thwavenow.com, Transgendertrend.com, e YouthTransCriticalProfessionals.org. Os dois primeiros sites são sites de pais preocupados com a transgeneridade entre jovens, enquanto o terceiro é um site de profissionais de saúde que são críticos em relação aos jovens trans e ao consenso de profissionais de saúde a respeito de como tratar esses jovens.
À primeira vista, tais questionamentos podem parecer legítimos. Mas uma análise desses sites revela uma prevalência extremamente alta de ideias transfóbicas e linguagem degradante ao se referir a indivíduos trans e ao processo de transição, que frequentemente é descrito como “lesões químicas e cirúrgicas” ou “auto-mutilação”, além de sugestões absurdas de alternativas a transição ou a abordagens que afirmem a identidade de gênero de jovens como praticar yoga ou dormir bem.
Esses sites também estão cheios de teorias transfóbicas e pseudocientíficas, como a ideia de que pessoas trans seriam todas fetichistas (o que já foi abordado aqui), além de alegações sem fundamento a respeito de pessoas trans. Além de tudo, os relatos dos pais de jovens trans nesses sites mostram uma tendência ao ceticismo em relação as identidades de seus filhos, assim como encorajamentos a negação dessas identidades.
E foi nesses três sites que a médica e pesquisadora Lisa Littman (que nunca trabalhou com jovens trans inclusive) foi buscar por pais de jovens trans para responderem a um questionário composto por noventa perguntas (abertas e de múltipla escolha). Com base em 256 questionários respondidos ela publicou um estudo no periódico PLOS One, dando a suposta base acadêmica para o uso do termo, que foi usado também por pesquisadores polêmicos como Ray Blanchard e Lisa Marchiano, que também escreve para o site conservador Quillette .
Antes de falarmos sobre os (óbvios) problemas metodológicos do estudo, vale questionarmos a escolha do local de publicação. O Plos One é um periódico de acesso aberto cuja filosofia de publicação difere de outros, permitindo que quase qualquer artigo seja publicado após uma simples revisão técnica. Critérios como, por exemplo, a interpretação que o autor tem dos resultados, raramente impedem a publicação de um estudo. Isso significa que esse é um periódico que permite a publicação de artigos que seriam barrados na maioria das publicações acadêmicas, o que é evidenciado pelo fato de que Littman conseguiu publicar um estudo com uma metodologia extremamente problemática.
Mas quais são os problemas com a sua metodologia? Primeiramente, o fato de que ela pegou todas as suas amostras de três sites que compartilham uma mesma ideologia, e que tem uma forte tendência a serem transfóbicos e a demonstrarem ceticismo em relação as identidades de seus filhos. Além do mais, o próprio termo RODG foi cunhado nesses sites. Sendo assim, a amostragem usada no estudo não é representativa da população em geral, e quase certamente foi escolhida com a intenção de confirmar a tese de RODG, já que acredito que poucos pesquisadores seriam capazes de não perceber um erro metodológico tão gritante.
Outro problema é que os questionários são direcionados apenas aos pais dos jovens trans, ignorando completamente as perspectivas desses jovens. Essa falha metodológica se torna mais problemática pelo fato de que diversos estudos que compõe a literatura científica sobre a transgeneridade já apontaram a tendência que os pais de indivíduos trans tem de interpretar erroneamente as experiências de seus filhos. Essa tendência se agrava pelo fato dos pais terem sido encontrados em sites com uma tendência claramente anti-trans.
De qualquer forma, mesmo se tal tendência não fosse um fator, as experiências e perspectivas dos jovens a respeito de sua transgêneridade são um componente essencial para entendê-la, e a falta dessas perspectivas compromete seriamente a qualidade dos dados.
Como se não bastassem os problemas metodológicos na obtenção dos dados que embasam o estudo, Littman interpreta os seus resultados de uma maneira que parece ignorar explicações mais simples para as suas observações, além de ignorar também estudos anteriores sobre o tema.
Um exemplo é conclusão de que haveria um contágio social que estaria levando jovens a se dizerem trans após observar que grande parte dos jovens trans analisados no estudo têm número significativo de amigos trans (e que frequentemente se assumem trans em um espaço curto de tempo). Ela também cita que outra evidência para corroborar com essa teoria seria o fato de que pais relataram que muitas vezes esses grupos de amigos já estavam formados antes deles se assumirem publicamente como trans.
Já é um fato bem observado que indivíduos trans tendem a se agrupar como forma de se proteger da discriminação, buscar apoio e estabelecer relações com pessoas que conseguem compreender as suas experiências de vida. Sendo assim, não há nada estranho no fato de jovens trans estarem cercados de amigos trans. Mesmo as contas matemáticas que Littman fez para demonstrar a suposta pouca probabilidade de que tal explicação bastaria para esclarecer as suas observações não corroboram de forma alguma com a sua hipótese, como demonstrou Serano.
Além do mais, vale citar que a segunda observação não vale nada sem o complemento das perspectivas dos próprios jovens. Afinal, como saber se os jovens já não haviam se assumido trans para os colegas mais próximos antes de se assumir publicamente? Ainda mais levando em conta que a maior parte dos jovens transgêneres tende a se assumir para os amigos próximos antes de se assumir para os pais. Essa hipótese se torna ainda mais provável quando se leva em conta que os pais recrutados para o estudo tendem a ter uma perspectiva anti-trans e serem céticos em relação as identidades dos filhos, o que certamente contribuiria para a relutância desses jovens em se assumir publicamente.
Tal hipótese, que vai de acordo com o que já têm sido observado por estudos anteriores é uma explicação muito mais plausível do que a ideia de que estaria havendo um contágio social que estaria levando jovens sem disforia de gênero a se assumirem como transgêneres.
Outro aspecto problemático da interpretação de Littman é a ideia de que a deterioração da saúde mental dos jovens e da relação entre eles e os pais seriam o produto de uma nova forma de disforia de gênero. A amostragem indica que grande parte dos pais escolhidos para o estudo são transfóbicos e tendem a não aceitar as identidades de seus filhos, o que evidentemente provocaria conflitos na relação entre eles, além de afetar negativamente a saúde mental dos jovens em questão.
Aliás, há uma ampla literatura científica demonstrando que um dos fatores principais que determina a saúde mental de indivíduos trans (especialmente jovens trans) é a aceitação ou rejeição que tais indivíduos experienciam, demonstrando em particular a importância da aceitação por parte da família. Tal explicação é não apenas mais plausível, mas também mais embasada, mas Littman prefere ignorá-la em favor de uma explicação que vai de acordo com a narrativa que ela visa reforçar com seu estudo.
Mesmo a ideia de que o aumento no número de jovens trans que foram caracterizados como mulheres ao nascerem seria o produto de uma nova forma de disforia de gênero faz menos sentido do que a hipótese de que tal aumento seria o produto do aumento de visibilidade dos homens trans e trans não-bináries, fator que facilita o processo de autodescobrimento de indivíduos trans.
Ao analisar o estudo como um todo, se torna claro que todas as razões dadas por Littman para justificar a sua sugestão de que uma nova forma de disforia de gênero estaria surgindo podem ser explicadas de forma mais simples. Inclusive, nenhuma organização reconhecida nacionalmente ou mundialmente pelo tratamento de indivíduos trans reconhecem tal conceito como válido. A WPATH (Associação Mundial de Profissionais para a Saúde de Transgêneros), por exemplo, recomenda que não se utilize esse termo pelo fato de esse não ser um conceito cientificamente reconhecido por profissionais que lidam com transgêneres.
Tudo indica que se trata de uma tentativa de encontrar formas de negar a identidade de gênero de jovens trans e de dificultar o acesso desses jovens ao tratamento necessário para o processo de transição mascarada de uma preocupação com esses jovens e supostamente embasada em ciência. Independente de tal julgamento ser verdadeiro ou não, não há base científica alguma para esse conceito.
Outras questões levantadas por TERFs
Além das questões que revolvem em torno da origem da transgêneridade, as TERFs levantam outras questões usadas para criticar indivíduos trans e para mobilizar pessoas contra os direitos desses indivíduos, assim como contra as ocupações de certos espaços por transgêneres.
A primeira questão que vale a pena abordar é o debate em torno da socialização. As TERFs frequentemente argumentam que indivíduos trans jamais poderiam pertencer ao gênero com o qual se identificam pois tais indivíduos foram socializados de acordo com o gênero que lhes foi atribuído devido as suas características biológicas. De acordo com elas, tal socialização não poderia ser superada. Esse argumento geralmente é usado para argumentar que mulheres trans não deveriam ser permitidas em espaços femininos, pois a socialização masculina que elas receberam as tornaria uma ameaça para as mulheres.
De fato, a socialização de gênero é um fator que deve ser considerado em debates sobre questões de gênero, e é válido levantar questões sobre os efeitos dessa socialização. Apesar disso, a visão apresentada pelas TERFs a respeito dessa questão é não apenas problemática e incorreta como antifeminista, como será explicado mais à frente.
Primeiramente, falta nuance a essa visão. Não há uma socialização feminina ou masculina universal. Embora possa-se notar uma tendência mundial (com raras exceções) a socializar as mulheres a serem submissas e os homens a serem dominantes, tal socialização toma diferentes formas e opera em diferentes graus em diferentes culturas.
Mas mesmo dentro de uma única cultura, tal socialização não é aplicada de maneira uniforme em todos os indivíduos. A socialização pode ser diferente acordo com a cidade, bairro, escola e outros ambientes frequentados por indivíduos. A socialização e os papéis de gênero são, por exemplo, geralmente aplicados e reforçados de forma mais rígida em áreas rurais, religiosas e conservadoras do que em cidades grandes e cosmopolitas que tendem a proporcionar uma socialização menos rígida.
Até mesmo fatores como a escola em que alguém estuda ou a forma que tal pessoa foi criada pelos pais afeta a sua socialização, e cada vez mais pais estão se esforçando para criar seus filhos de uma forma livre de estereótipos de gênero. Além do mais, no caso de pessoas trans, a idade com que elas decidiram assumir o seu gênero faz uma diferença grande também. Não dá para comparar a socialização de um indivíduo que iniciou a transição na infância com a de outro que viveu por décadas como alguém do gênero que lhe foi atribuído.
Por fim, mesmo que todas as pessoas fossem socializadas da mesma forma, diferentes indivíduos reagem de diferentes maneiras a essa socialização. Além do mais, nós não somos objetos passivos sem capacidade de resistir e superar essa socialização. Aliás, se a nossa socialização determinasse o nosso destino, a própria luta feminista não teria propósito, pois as mulheres que foram socializadas para serem submissas estariam condenadas a subordinação pela sua socialização. Sendo assim a ideia de que não há como superar a socialização vai contra uma das premissas básicas do feminismo, que é a ideia de que a dominação patriarcal pode (e deve) ser combatida.
Mesmo assim, as ativistas TERFs continuam usando a questão da socialização como argumento para excluir mulheres trans de espaços femininos, já que elas representariam uma ameaça. Os espaços que são o foco desse debate são os banheiros e as prisões, e as TERFs tem lutado ferrenhamente contra todo tipo de projeto de lei que possa facilitar o acesso de mulheres trans a esses espaços.
A argumentação delas, focada na questão da socialização, é frequentemente reforçada pela ideia de que mulheres trans seriam tão propensas a cometerem crimes violentos e abuso sexual quanto homens. Essa posição é geralmente fundamentada com base em um estudo publicado em 2011 pela pesquisadora Cecília Dhejne e colegas do Instituto Karolinska, em Estocolmo.
O estudo acompanhou 324 indivíduos trans que fizeram cirurgia de readequação sexual ao longo de um período de trinta anos. Esses indivíduos foram divididos em grupos de acordo com os períodos em que eles foram observados, e os pesquisadores tiraram conclusões sobre os índices de mortalidade e de criminalidade nesses indivíduos.
Uma das observações do estudo é que o índice de condenações criminais das trans MtF entre o período de 1973 e 1988 foi semelhante ao de homens cis. Esses dados têm sido usados por TERFs para sustentar a ideia de que mulheres trans são tão violentas e perigosas quanto homens cis. Mas tal interpretação não apenas é incorreta, mas vai em contradição direta com os resultados do estudo.
Primeiramente, o estudo não analisa e compara os tipos de crime que foram cometidos, o que é uma distinção importante. Além do mais, a forma como a marginalização experienciada por indivíduos trans pode levar tais indivíduos a um estilo de vida que aumenta as chances de sofrer condenações criminais não é sequer levada em consideração por aquelas que usam esse estudo para sustentar essa hipótese.
E o próprio estudo relatou que esse padrão de criminalidade não se manteve no grupo observado entre 1988 e 2003, provavelmente uma reflexão da diminuição do estigma social associado a transgêneres e do fato observado de que os indivíduos do segundo grupo tiveram mais acesso a tratamentos para lidar com a saúde mental. Mesmo assim, esse dado é convenientemente ignorado para sustentar uma narrativa de que mulheres trans representariam uma ameaça se permitidas em espaços femininos.
Isso nos leva a outra questão: a ideia de que permitir que indivíduos acessem banheiros de acordo com o gênero com o qual se identificam provocaria uma onda de violência sexual contra mulheres. Esse argumento apresenta duas formas. A primeira delas argumenta que predadores sexuais poderiam fingir ser mulheres trans para acessar banheiros femininos. A segunda argumenta que as próprias mulheres trans já representam uma ameaça por serem homens na verdade.
De qualquer forma, nenhuma das duas versões tem embasamento. Vários países já adotam leis que permitem com que pessoas acessem os banheiros do gênero com o qual se identificam, e em nenhum deles se observou um aumento na violência sexual em banheiros. No ano passado, aliás, um estudo conduzido pelo Williams Institute, um Think Tank da Faculdade de Direito da UCLA concluiu que não há nenhuma correlação entre crimes em banheiros e leis que permitem com que indivíduos trans acessem os banheiros apropriados.
O que é corroborado por estudos é o fato de que impedir tal acesso coloca indivíduos transgêneres em grande risco. Um estudo recente, por exemplo, indicou que jovens trans correm um risco extremamente alto de ser vítimas de assédio sexual em escolas que não permitem que esses jovens usem os banheiros apropriados ao seu gênero.
Aliás, a histeria em torno dos banheiros tem prejudicado mulheres cis. Já foram relatados vários casos de mulheres cis cuja apresentação de gênero não é estereotipicamente feminina sendo expulsas de banheiros femininos por serem confundidas com mulheres trans. Ou seja: tal histeria prejudica indivíduos trans e mulheres cis sob a justificativa de se tratar de uma necessidade de proteger espaços femininos.
Outra questão levantada pelas TERFs é a ideia de que o ativismo trans estaria provocando um apagamento das lésbicas. Acredito que essa acusação é particularmente prejudicial devido ao seu potencial de jogar indivíduos trans contra lésbicas. Além do mais, ela tende a ser oportunista, sendo frequentemente promovida por pessoas heterossexuais que transformam uma questão real, que é a falta de visibilidade das lésbicas na comunidade LGBT, em uma arma para atacar indivíduos trans em nome delas.
Essa acusação tem várias formas e aspectos diferentes. A primeira é a ideia de que o ativismo trans estaria apagando as lésbicas ao estar pressionando lésbicas com uma expressão de gênero “masculina” a se identificarem como homens. Além de não ter base alguma, essa ideia infantiliza os homens trans e nega a sua autonomia sobre a própria identidade.
Ativistas trans reconhecem a distinção entre uma lésbica cuja expressão de gênero é “masculina” e um homem trans, e cabe o indivíduo em questão decidir como se identificar e ter a sua identidade respeitada. Quando uma TERF afirma que um homem trans é de fato uma lésbica, ela está fazendo justamente o que acusa os ativistas trans de fazer ao procurar apagar de fato uma identidade. Aliás, como já mencionado anteriormente, lésbicas que não performam a “feminilidade” existem inclusive entre as mulheres trans.
Outra forma de colocar as mulheres trans contra lésbicas cis, que também é ligada a ideia de que as mulheres trans são predadoras sexuais, é a ideia de que mulheres trans estariam pressionando lésbicas a fazerem sexo com elas, acusando-as de transfóbicas quando elas se recusam. As que pregam essa ideia usam o termo “teto de algodão” (cotton ceiling) para se referir a ideia de que lésbicas teriam que gostar de pênis e fazer sexo com mulheres trans para não serem transfóbicas, se referindo a um termo criado por ativistas trans.
O problema é que a conotação original do termo tem um significado completamente diferente. Ele foi originalmente criado para criticar algumas lésbicas que usam a sua sexualidade para negar a identidade de mulheres trans ao dizer que não se sentem atraídas por elas por serem lésbicas e, portanto, não gostarem de homens.
Praticamente nenhum ativista trans acredita que lésbicas são forçadas a gostarem de pênis ou acredita que é aceitável que uma mulher trans pressione uma lésbica cis a ficar com ela. A ideia de que isso estaria ocorrendo é apenas mais uma tática usada pelas TERF’s para representar as mulheres trans como predadoras sexuais.
Linda Riley, lésbica britânica e editora da revista para mulheres lésbicas e bissexuais “Diva Magazine”, afirmou em um debate em um programa de rádio da BBC que em 40 anos sendo uma lésbica assumida, ela nunca se deparou com um caso de uma lésbica cis sendo coagida a fazer sexo com uma mulher trans. Após o ocorrido, ela sofreu uma série de ataques online por TERFs, que questionaram a sua escolha de parceiros sexuais, ridicularizaram o seu sotaque e a acusaram de não ser uma lésbica de verdade.
Aliás, as mesmas TERFs que espalham a retórica do apagamento das lésbicas são as primeiras a negar a identidade de lésbicas cis quando elas têm relações com mulheres trans, afirmando que por se sentirem atraídas por “homens” elas não são lésbicas de verdade. Não seria essa de fato uma forma de tentar apagar lésbicas ao negar a sua identidade?
Isso nos leva a outra questão levantada pelas TERFs, que consiste em uma série de críticas de que a linguagem usada por ativistas trans estaria prejudicando as mulheres, principalmente a linguagem trans-inclusiva e a terminologia ligada ao ativismo queer, rejeitada veementemente pelas TERFs.
Elas dizem, por exemplo, que quando se utiliza uma terminologia que inclui homens-trans ao falarmos de questões relacionadas a gravidez e ao aborto, nós ignoramos o fato de que essa é uma questão que afeta as mulheres, e que ao usarmos termos como “portadores de úteros” (que é um termo desajeitado de fato), impedimos as mulheres de se identificarem como mulheres.
Mas primeiramente, incluir homens trans nesse debate não nega o fato de que essa questão afeta primariamente as mulheres, da mesma maneira que reconhecer que a violência sexual contra homens existe não nega o fato de que essa é uma questão que afeta primariamente as mulheres. Além do mais, a possibilidade de homens trans engravidarem é um fato, e policiar a linguagem para impedir que se reconheça esse fato só obscurece as questões relacionadas a esse tema. E ninguém está impedindo mulheres cis de continuarem a referir a si mesmas como mulheres ao tratar dessa questão.
Elas também criticam muito o uso do termo queer por parte de ativistas trans, que é usado em dois sentidos. O primeiro sentido é como um termo guarda-chuva para incluir todos aqueles indivíduos cuja identidade de gênero, apresentação de gênero e/ou sexualidade foge dos padrões hétero-cisnormativos. Usado dessa forma, o termo inclui várias identidades sexuais e de gênero.
A segunda forma se refere a uma política anti-identitária. Sob essa perspectiva, também é muito comum que indivíduos se definam simplesmente como queer como forma de se recusar a se enquadrar em uma identidade sexual ou de gênero particular.
TERFs tendem a argumentar que o termo queer apaga as diferentes identidades com as quais elas podem vir a se identificar quando usado no segundo sentido, e que quando usado no primeiro sentido, o termo força com que gays, lésbicas e outras minorias se identifiquem com um termo que elas rejeitam (“Eu sou uma lésbica, não queer!”).
Mas absolutamente nenhum ativista trans está pressionando pessoas para que elas deixem de usar os termos de sua preferência para referir a si mesmas, e nem a usarem o termo “queer” para se identificar. Lésbicas, gays e bissexuais podem continuar usando esses termos para se referirem a si mesmos enquanto outros preferem simplesmente o termo queer. Quem está policiando a linguagem são as próprias TERFs que frequentemente escrevem artigos furiosos atacando o termo e lutando contra ele como se o seu uso por parte de ativistas trans entre outros fosse uma tentativa de apagar as suas identidades.
O mesmo vale para as críticas que elas fazem ao uso do termo “cis”, que de acordo com elas estaria impedindo-as de identificarem-se simplesmente como mulheres. Mas o termo, criado com o simples intuito de fazer uma distinção entre indivíduos transgêneres e aqueles não-transgêneres não impede que elas se identifiquem como mulheres sem usar o prefixo “cis”.
Por fim, elas criticam o uso do próprio termo “TERF” afirmando que se trata de um termo pejorativo usado para justificar misoginia. Acredito que essa objeção não seja justa. Primeiramente, o termo é descritivo. Elas mesmas se definem como feministas radicais, e admitem explicitamente que querem excluir mulheres trans de espaços femininos, o que as torna trans-excludentes.
Algumas delas afirmam que essa caracterização seria injusta, pois elas não querem excluir indivíduos trans de espaços femininos, e sim mulheres trans. Homens trans, considerados mulheres por elas, seriam bem-vindos. Ou seja: Ao mesmo tempo em que elas excluem mulheres trans de espaços femininos elas negam a identidade de mulheres e homens trans, e ainda acreditam que seja injusto chamá-las de trans-excludentes!
Também discordo de que o termo seria misógino. Ele tem como objetivo designar apenas um grupo extremamente específico de pessoas, que são aquelas que usam o feminismo radical para mascarar a sua transfobia. Aliás, o termo é frequentemente usado por feministas que lutam ativamente contra a misoginia, sejam elas cis ou trans.
Mas o termo é de fato pejorativo, da mesma forma que o são termos como “racista”, “machista” ou “misógino”. E é claro que um termo usado para designar um grupo extremamente transfóbico tem uma conotação negativa, assim como os termos já mencionados.
Tendo dito isso, a retórica anti-TERF tende a assumir por vezes um tom demasiado agressivo. Mas acredito que isso seja uma consequência inevitável da retórica extremamente degradante que elas usam para se referir as pessoas trans e do ativismo no qual elas se engajam que luta ativamente contra os nossos direitos.
Aliás, é extremamente irônico que elas tenham reclamações a fazer sobre a terminologia utilizada por ativistas trans quando a própria terminologia que elas usam para se referir a indivíduos trans é propositalmente degradante.
Como já mencionado antes, elas se referem a mulheres trans como “machos que se identificam como mulheres” (cujo acrônimo em inglês é TIM) e homens trans como “fêmeas que se identificam como homens” (cujo acrônimo em inglês é TIF). Cirurgias realizadas por indivíduos trans são frequentemente referidas como mutilação, e o termo “Frankenstein” é usado frequentemente por elas para se referir a transgêneres que realizaram cirurgias.
Outra crítica que as TERFs têm ao ativismo trans é que ele estaria colocando em risco a vida de crianças. Ativistas trans são frequentemente acusadas de estarem promovendo abuso infantil ao lutarem por uma abordagem afirmativa que reconheça a identidade de gênero de crianças e adolescentes trans. Grande parte das críticas vem da ideia (equivocada) de que crianças estariam sendo pressionadas a passar por um processo de transição prematuramente por demonstrar uma expressão de gênero ou afirmar uma identidade de gênero diferente dá que lhe foi atribuída, sendo submetidas a bloqueadores de puberdade perigosos e que não foram testados (o que não é verdade) e hormônios desde cedo sem uma avaliação apropriada. Muitas afirmam inclusive que estariam dando hormônios a criança, o que demonstra um desconhecimento completo de como funciona a abordagem afirmativa.
O problema é que essa crítica, compartilhada também por grupos conservadores e fundamentalistas religiosos (assim como várias posições das TERFs), parte de um desconhecimento completo da abordagem afirmativa.
Profissionais que lidam com crianças trans sabem que uma criança pode reivindicar um gênero diferente do que lhe foi atribuído e mudar de ideia, assim como eles sabem que certos comportamentos de gênero podem ou não ser indicativos de que a criança em questão seja transgênere. Afinal, é feita a diferenciação entre identidade de gênero e expressão de gênero. O que diferencia uma criança transgênere de uma criança que está passando por uma fase ou que simplesmente tem um comportamento que foge dos estereótipos do seu gênero é que a identificação da criança trans com um gênero diferente do que lhe foi atribuído é consistente e persistente.
A abordagem afirmativa não tem como objetivo colocar as crianças a caminho da transição, e sim ouvi-la em conjunto com os pais e outros adultos que a acompanham e tentarem entender o que essa criança está comunicando sobre o seu gênero e se ela pode vir a ser transgênere. Durante esse processo, a identidade de gênero que a criança reivindica é respeitada.
Tal abordagem dá liberdade para jovens explorarem livremente a sua identidade e expressão de gênero, e apresenta benefícios mentais significativos para tais jovens. Crianças que não recebem esta liberdade correm um risco maior de sofrer uma série de adversidades psicossociais como depressão, autolesão, isolamento, transtorno de stress pós-traumático e tendências suicidas.
Aliás, o tratamento de jovens trans não inclui nenhum procedimento médico em crianças. Não há ativistas trans ou médicos que trabalham com a abordagem afirmativa dando hormônios ou bloqueadores de puberdade para crianças de cinco anos.
A primeira intervenção médica é a aplicação de bloqueadores de puberdade durante a adolescência caso a identidade transgênere reivindicada pela criança em questão tenha persistido. Bloqueadores impedem o desenvolvimento de características sexuais secundárias que surgiriam durante a puberdade, o que permite que a pessoa tratada tenha mais tempo para consolidar a sua identidade de gênero sem ser sujeita aos efeitos da puberdade, que podem ser extremamente prejudiciais a indivíduos transgêneres. Os efeitos provocados por bloqueadores podem ser revertidos ao parar de tomar o medicamento caso a pessoa decida não transicionar.
Grande parte daqueles que se opõe ao uso de bloqueadores de puberdade, incluindo as TERFs, afirmam frequentemente que esses medicamentos são perigosos e que seus efeitos colaterais são desconhecidos. A leuprorrelina, usada no tratamento de jovens trans, foi patenteada em 1973, e aplicada pela primeira vez nos Estados Unidos em 1985 para o tratamento de diversas condições.
Ou seja, se trata de um medicamento que tem sido usado há mais de trinta anos com segurança e que tem mais de quarenta anos de testes. O uso para o tratamento de jovens trans é mais recente, mas a literatura científica em torno do tema sugere que seus efeitos negativos são muito menores do que o seu benefício potencial.
Os riscos principais dos bloqueadores de puberdade estão ligados ao desenvolvimento ósseo e a possível perda de fertilidade. Há também uma preocupação de que bloqueadores de puberdade possam afetar o desenvolvimento cognitivo, mas os dados que temos em mãos indicam que indivíduos que usaram bloqueadores de puberdade não apresentam uma desvantagem cognitiva a longo prazo em relação a aqueles que não os usaram. Apesar disso, ainda há uma necessidade de mais estudos sobre o tema.
Levando tudo em consideração, há de fato riscos associados ao uso de bloqueadores. Embora esses riscos sejam muito menos significativos do que a visão de TERFs e outros opositores sensacionalistas, eles devem ser levados em consideração ao aplicar bloqueadores. Apesar disso, esses riscos têm que ser medidos em conjunto com os riscos associados com a possibilidade de deixar indivíduos transgêneres que sofrem de disforia corporal passarem pela puberdade.
Para uma pessoa trans, o desenvolvimento de características sexuais secundárias durante a puberdade pode ser extremamente traumático, agravando a disforia de gênero e provocando uma deterioração da saúde mental desse indivíduo. Além do mais, os efeitos da puberdade não são 100% irreversíveis, o que significa que a ausência de bloqueadores pode provocar efeitos negativos indivíduos trans carregarão por toda a vida.
Além do mais, indivíduos trans que foram submetidos aos efeitos da puberdade tendem a necessitar de mais cirurgias e procedimentos médicos do que aqueles que conseguiram evitá-la. Sendo assim, os efeitos negativos provocados pela puberdade em pessoas trans são muito mais significativos do que os riscos em potencial de bloqueadores de hormônios.
Tendo dito isso, a verdade é que ainda há muito o que melhorar no tratamento de crianças e adolescentes que podem vir a ser transgêneres. Ainda não sabemos, por exemplo, como distinguir crianças que são apenas gênero-divergentes que são de fato transgêneres e virão a transicionar daquelas que manterão uma identidade cisgênere. Também há uma carência de estudos a longo prazo sobre os efeitos de bloqueadores no tratamento de jovens para que possamos ter uma compreensão melhor dos seus efeitos colaterais e de como lidar com eles.
Mas a resposta para tais questionamentos está na realização de pesquisas e no diálogo entre diferentes grupos envolvidos nessa questão como profissionais que trabalham com jovens gênero-divergentes, os pais desses jovens, pesquisadores e os próprios jovens. Só assim poderemos pouco aos poucos aprendendo a adaptar as nossas práticas para melhor atendermos as necessidades desses jovens. E nesse processo, o sensacionalismo gerado por TERFs e outros grupos reacionários que reagem de forma estridente a qualquer menção de jovens trans nada ajuda.
O ativismo TERF na prática
Tendo abordado o contexto em que surgiram as TERFs e a sua visão e objeções em relação a transgeneridade, vale citar alguns exemplos práticos de como funciona o seu ativismo e quais são as suas consequências. Desde os anos 70, as TERFs têm se oposto ferrenhamente aos indivíduos transgêneres, espalhando falsas informações, lutando contra os direitos desses indivíduos, usando táticas de doxxing (a exposição de dados privados de indivíduos) e mesmo violência física, além de frequentemente fazerem alianças com grupos de direita anti-feministas no processo.
A luta organizada contra direitos trans tem sido particularmente danosa. Um exemplo já citado, e um dos que teve consequências mais sérias, é a participação de Janice Raymond na retirada de acesso a tratamento médico para pessoas trans durante o governo Reagan nos anos 70.
Pouco depois de publicar o seu livro “O Império Transexual”, Raymond escreveu um relatório para o National Center for Healthcare Technology (Centro Nacional de Tecnologias de Assistência Médica). Em seu relatório, ela define o tratamento médico associado a transição de gênero como controverso, cosmético, anti-ético e medicamente desnecessário.
Apesar de não possuir embasamento científico, o relatório escrito por Raymond contribuiu para a remoção do acesso a serviços médicos relacionados a transição, o que teve um efeito devastador sobre a população transgênere estadunidense.
O caso de Raymond se destaca pelo sucesso obtido em privar indivíduos trans de acesso a serviços importantes. Mas com sucesso ou não, TERFs continuam lutando ferozmente contra direitos de indivíduos transgêneres em diversos países. Um dos exemplos que mais têm gerado controvérsias é a oposição de TERFs a reformas propostas no Gender Recognition Act, projeto de lei aprovado em 2004 no Reino Unido, um dos locais onde elas mais têm influência.
O projeto representou um avanço, permitindo que indivíduos trans tenham a sua identidade de gênero reconhecida. Apesar disso, esse reconhecimento é dependente de vários critérios, sendo necessário que o indivíduo em questão tenha mais de 18 anos (ou que tenha aprovação dos pais caso tenha entre 16 e 18), que ele tenha vivido ao menos dois anos como o gênero condizente com a sua identidade e que pretenda continuar vivendo assim “até o fim de sua vida” entre outros critérios. Além do mais, o processo de reconhecimento é burocrático e caro, sendo inacessível para várias pessoas.
A reforma proposta visa permitir que indivíduos transgêneres tenham o seu gênero reconhecido com base na auto-identificação, algo que TERFs são quase unanimemente contra independente do país. Na Irlanda, tal reforma foi implementada em 2015. Em diversos países, o reconhecimento de gênero com base na auto-identificação também já é aceito.
Apesar disso, a proposta tem gerado inúmeros protestos e controvérsias devido a oposição a ela liderada por TERFs, que argumentam que essa reforma colocaria a segurança das mulheres em risco ao permitir que “machos” adentrem espaços femininos.
Elas tecem seus argumentos de uma forma que cria um cenário no qual a expansão dos direitos trans estaria ameaçando os direitos das mulheres, posição que foi reiterada por vários veículos de mídia, inclusive veículos que se dizem progressistas.
O problema é que além de implicar que os direitos de mulheres trans a acessarem espaços femininos não contam como direitos de mulheres, tal posição não tem absolutamente nenhum embasamento. Como já mencionado, vários países já permitem que o gênero seja reconhecido de acordo com a auto-identificação.
Apesar disso, em nenhum local onde isso ocorreu houve um aumento na quantidade de atos de violência ou assédio sexual contra mulheres em espaços femininos. Ou seja: a expansão de direitos trans não ameaça à segurança de mulheres.
Na verdade, é a recusa em permitir que indivíduos trans acessem espaços condizentes com o seu gênero que coloca em risco a segurança de mulheres, ao aumentar significantemente a chance de que mulheres trans sofram agressões ou abusos sexuais em banheiros ou prisões. Tais cenários também aumentam a violência contra homens trans e indivíduos não-bináries. E ao contrário da posição das TERFs, essa afirmação é baseada em uma violência real e sistemática.
Mesmo assim, elas continuam a conjurar um cenário apocalíptico que nunca se concretiza com base em extrapolações de cenários fantasiosos e casos isolados para gerar medo e assim justificar os seus ataques aos direitos trans.
TERFs têm também se mostrado dispostas a se opor a projetos que garantem direitos a outras minorias pelo fato desses projetos também garantirem direitos a indivíduos trans. Um exemplo é a oposição que TERFs estadunidenses tem demonstrado ao Equality Act, uma lei que foi aprovada em maio de 2019 garantindo proteções a indivíduos em nível federal contra diversas formas de discriminação. A lei inclui proteção contra discriminação com base em identidade de gênero e orientação sexual.
Apesar de beneficiar a população LGBT, o projeto de lei foi representado por TERFs como uma ameaça as mulheres por proteger a identidade de gênero, o que de acordo com elas contribui para com que homens predatórios adentrem espaços femininos. Em sua luta contra o Equality Act, TERFs estadunidenses se aliaram a diversos grupos de direita, incluindo grupos religiosos fundamentalistas e antifeministas.
A organização TERF mais ativa nessa luta é a Women’s Liberation Front (Frente de Libertação das Mulheres), conhecida pelo acrônimo WoLF. Fundada em 2014, a organização diz ter como objetivo lutar pela libertação total das mulheres. Em sua página oficial do facebook, a organização faz postagens sobre diversos assuntos relacionados a questões feministas. Apesar disso, o ativismo delas têm se concentrado em se opor a legislações que beneficiariam a população transgênera.
A ativista mais conhecida da WoLF é Julia Beck, uma TERF lésbica que foi expulsa de uma comissão LGBTQ da prefeitura de Baltimore devido as suas posições anti-trans. Pouco depois, ela fez uma aparição na no canal conservador Fox News no programa de Tucker Carlson, um apresentador de televisão e comentarista político conhecido por suas declarações extremamente racistas e misóginas.
Durante o programa, Beck reiterou os mitos conservadores que visam representar a inclusão de mulheres trans em espaços femininos como uma ameaça as mulheres. Ela também afirmou que a luta transgênere é completamente diferente da luta de gays, lésbicas e bissexuais por não ser baseada em uma orientação sexual, e que ela acredita que essas identidades não deveriam ser todas parte do mesmo acrônimo.
Em janeiro de 2019, Julia Beck apareceu junto com Jennifer Chavez e Kara Dansky, duas outras membras da WoLF, em um evento em oposição ao Equality Act organizado pela Heritage Foundation, organização conservadora com fortes ligações com o Partido Republicano.
A organização tem um longo histórico de luta a favor de causas conservadoras. Ao longo de décadas ela lutou contra o aborto, combateu o feminismo, promoveu o negacionismo climático e buscou manter discriminações contra a população LGBT mascaradas de “liberdade religiosa”.
Esse histórico reacionário não impediu as TERFs da WoLF de participarem deste evento e desempenharem o papel de marionetes ao fornecerem argumentos supostamente vindos da esquerda para ajudar a legitimar os ataques da Heritage Foundation contra a população trans. Esses argumentos foram novamente baseados na ideia recorrente no pensamento TERF de que permitir que mulheres trans ocupem espaços femininos colocaria em risco a integridade das mulheres cis.
Mas essa não foi a única vez que membras da WoLF se aliaram a Heritage Foundation. Em fevereiro de 2017, Mary Lou Singleton, integrante da WoLF, havia participado de outro evento organizado pela instituição. Nesse evento, ela disseminou os mesmos mitos transfóbicos que seriam repetidos em 2019 por Beck, Chavez e Dansky.
Como se não bastasse, a WoLF já recebeu financiamento da direita. A organização recebeu U$ 15.000 da Alliance Defending Freedom (Aliança Defendendo a Liberdade), um grupo fundamentalista religioso que assim como a Heritage Foundation tem usado a ideia de liberdade religiosa para tentar criar legislações que permitam que cristãos possam se recusar a prestar serviços ou a empregar indivíduos LGBTs, além de atuar em diversas outras causas anti-progressistas.
Pode-se argumentar que é injusto generalizar e afirmar que as TERFs estariam dispostas a se aliar com a direita com base nas ações de um grupo. Mas ao pesquisar por “Julia Beck” e “WoLF” no “r/GenderCritical”, maior espaço TERF no reddit, vemos que há muito mais manifestações de apoio as ações da organização e de Beck do que críticas a elas. No caso de uma organização que se alia à extrema direita de forma tão descarada, a única postura aceitável seria uma condenação total da organização e uma recusa de associá-la ao feminismo radical, o que está longe de ser a atitude predominante entre as TERFs.
Aliás, o mesmo subreddit está repleto de debates sobre o quão justificável seria uma aliança com grupos de direita para combater a “ameaça trans”. Nesses debates, algumas feministas radicais se colocam contra tais alianças. Apesar disso, muitas delas justificam a aliança com grupos antifeministas e anti-LGBT.
Inclusive nos espaços online que elas ocupam, TERFs frequentemente compartilham conteúdo com origem em instituições, sites e veículos midiáticos de direita, dando audiência a essas entidades. Da mesma forma, grupos de direita frequentemente compartilham conteúdo produzido por TERFs, assim como usam os seus argumentos para atacar pessoas trans.
Mas o ativismo TERF não se limita a atacar os direitos da população trans. Elas também atacam indivíduos transgêneres frequentemente. A feminista radical Cathy Brennan, conhecida por ter sido coautora de uma carta para as Nações Unidas afirmando que a identidade de gênero não deveria ser reconhecida nem protegida pela lei, já levou o seu ativismo para um terreno pessoal diversas vezes. Ela já entrou em contato com o chefe de uma ativista trans e o médico de uma mulher trans que estava sofrendo de transtorno de estresse pós-traumático, interferindo em seu tratamento. Ela também já expôs os perfis de múltiplas mulheres trans no site de relacionamentos OKCupid.
Às vezes, tais ações têm como alvo jovens transgêneres. Em 2013, a instituição conservadora Pacific Justice Institute publicou uma história falsa sobre uma adolescente trans que supostamente estaria assediando garotas no banheiro. O rumor foi reproduzido pela Fox News, que além de descrever a estudante no masculino afirmou que representantes da escola teriam dito que os direitos dela como transgênere são mais importantes do que o direito de privacidade das garotas ao serem questionados pelos pais.
O site Gender identity Watch, administrado por TERFs, não só repetiu a história como expôs o nome real da estudante em questão, descrevendo-a como um “estudante macho”. Quando a ativista trans Cristan Williams ligou para a escola, ela descobriu que a história toda era baseada nas reclamações de um pai que não queria permitir que a jovem usasse o banheiro feminino.
Não houve nenhuma reclamação de assédio por parte de estudantes. Apesar disso, a exposição sofrida pela jovem, que já sofria bullying, provocou sérios efeitos psicológicos nela, o que fez com que a sua família a colocasse sob alerta de suicídio.
Aliás, a exposição de pessoas trans é uma prática extremamente comum entre TERFs. E essa exposição não tem como alvo apenas ativistas ou indivíduos envolvidos em casos como o mencionado acima. Em espaços online frequentados por TERFs é comum o compartilhamento de fotos e posts de redes sociais de pessoas trans. Esses indivíduos são muitas vezes ridicularizados pela sua aparência, pelos seus hobbies ou pelos seus fetiches sexuais, que são usados para reforçar a narrativa de que a transgeneridade em si seria um fetiche.
Cathy Brennan, por exemplo, criou um site inteiro dedicado a expor mulheres trans e aliados. Esse site inclui inúmeras fotos e posts de redes sociais contendo nomes e rostos de pessoas. Essa exposição inclui a revelação do nome anterior de diversas mulheres trans.
Indivíduos trans em redes sociais também são constantemente alvo de mensagens abusivas por parte de TERFs, que ainda por cima insistem em tratar tais indivíduos com pronomes inapropriados e usar os seus nomes anteriores caso elas tenham conhecimento desses nomes.
Mas TERFs não se limitam a abusar de indivíduos trans na internet. Apesar de frequentemente reclamarem da retórica agressiva contra elas por parte de ativistas trans, elas têm um longo histórico de violência contra indivíduos trans e aliados. O caso de Sandy Stone, já citado acima, é o mais emblemático. Mas infelizmente, esse evento está longe de ter sido o único desse tipo.
Já no início do movimento LGBT organizado nos Estados Unidos, a ativista e mulher trans Sylvia Rivera foi agredida na parada do orgulho LGBT de 1973 em Nova York pela feminista radical Jean O’Leary, que havia acabado de se pronunciar contra Rivera acusando-a de ser uma paródia de uma mulher. Apesar das agressões, Rivera conseguiu chamar a atenção do público e proferir um dos discursos mais icônicos do movimento LGBT.
Outro caso emblemático de violência praticada por TERFs ocorreu em 1973 durante a West Coast Lesbian Feminist Conference (Conferência Feminista Lésbica da Costa Oeste), um evento organizado por feministas radicais lésbicas em Los Angeles. Uma das organizadoras do evento foi a artista e mulher trans lésbica Beth Elliot, que também foi convidada para realizar uma performance como cantora durante o evento.
Algumas feministas radicais anti-trans se opuseram a performance de Elliot, e distribuíram panfletos durante o evento criticando a presença de “um homem” na conferência e gerando um debate sobre a inclusão de Elliot.
Quando chegou o momento de sua performance, TERFs se mobilizaram em direção ao palco. Nesse momento, Robin Tyler e Patty Harisson duas comediantes e feministas radicais, se levantaram para defenderem Elliot e terminaram sendo agredidas pelas TERFs que se opunham à sua presença. Depois do ocorrido, ocorreu uma votação onde a maior parte das feministas radicais presentes decidiu que o evento deveria ser trans-inclusivo. Apesar disso, Elliot decidiu se retirar para evitar gerar mais conflitos.
Em 1991, a atuação de feministas radicais trans-excludentes inspirou um movimento que ficaria para a história do ativismo trans, e que resultaria em ações agressivas por parte de TERFs em resposta. Tudo começou em 1991 no Michigan Womyn’s Music Festival (Festival de Música de Michigan das Mulheres), também conhecido como Michfest. O festival, que durou de 1976 até 2015 era um evento feministas organizado e frequentado apenas por mulheres.
Em 1991, porém, a mulher trans Nancy Burkholder, que já havia participado do festival anteriormente, foi expulsa do local por ser uma mulher trans sem que sequer lhe deixassem voltar ao local onde estava acampada para retirar as suas coisas. A expulsão de Burkholder foi justificada com base na política do festival de permitir apenas “mulheres-nascidas-mulheres” (womyn-born-womyn).
Após o ocorrido, mulheres cis e trans que apoiavam Burkholder começaram a se mobilizar contra a política trans-excludente do festival e contra o preconceito contra pessoas trans de maneira geral. Em 1992, feministas cis que se opunham à exclusão de indivíduos trans conduziram uma pesquisa dentro do festival perguntando se as participantes eram a favor da exclusão de mulheres trans do festival entre outras perguntas.
Foram entrevistadas 633 mulheres dentre um total de 7.500 que foram ao festival. Dentre as pessoas entrevistadas, 73.1% responderam ser a favor da inclusão de pessoas trans no festival, 22.6% foram contra e 4.3% não responderam à pergunta ou disseram não ter certeza se eram a favor ou contra. Mesmo com a maior parte das participantes sendo a favor da inclusão de mulheres trans, a política trans-excludente do festival persistiu.
No ano seguinte, Janis Walworth, uma das feministas envolvidas com a pesquisa, entrou no festival com quatro mulheres trans e abriu um espaço de conscientização com o objetivo de distribuir literatura e gerar discussões. Pouco tempo depois, organizadores do festival disseram que elas teriam que se retirar para sua própria segurança, pois as tensões estavam altas e elas teriam recebido ameaças por parte de feministas radicais que se opunham a mulheres trans no festival.
Algumas participantes, como Leather Dykes, se ofereceram para protegê-las, mas as cinco já haviam combinado que elas sairiam do festival se houvesse algum pedido para que elas se retirassem, e foi isso que elas fizeram, reunindo as suas coisas e acampando do lado de fora do festival. No dia seguinte elas colocaram uma mesa com literatura trans e feminista e abriram um espaço para debates, além de anunciar em uma faixa rosa que o espaço foi organizado por mulheres trans que foram expulsas do festival.
Esse foi o início do Camp Trans (Acampamento Trans), que iria retornar em diversas edições do festival e envolver ativistas trans icônicas como Leslie Feinberg e Riki Wilchins. O nome surgiria na edição de 1994, quando 28 pessoas acamparam e colocaram uma faixa no acampamento com os dizeres “Acampamento Trans: Para humanos-nascidos-humanos”.
Em suas diferentes edições, o acampamento realizou diversas atividades e foi frequentado por muitas participantes do festival, transformando a discriminação por parte das organizadoras do festival em uma oportunidade para educar pessoas sobre questões trans e aproximar feministas transgêneres e cisgêneres.
Apesar disso, o movimento não agradou às TERFs, que se manifestaram de diversas formas contra o que elas viam ser um ataque a um espaço feminino, incluindo ameaças. Feministas cis que apoiavam o movimento tiveram os seus espaços dentro do festival vandalizados e a literatura que elas trouxeram foi jogada fora como lixo. O blog Dirt from Dirt espalhou uma série de rumores sobre ações violentas que teriam sido cometidas por participantes do acampamento sem oferecer nenhuma evidência. Esses rumores seriam reproduzidos pela famosa TERF Sheilla Jeffreys em seu livro Gender Hurts, publicado em 2014.
Mas uma reação mais séria por parte de TERFs aos protestos por parte de ativistas trans contra a política do festival ocorreu em 1999 quando membras do grupo feminista Lesbian Avengers entraram no festival com uma garota trans de 16 anos.
Mal elas entraram e começaram os problemas. Um grupo de TERFs as cercou e algumas delas começaram a gritar “homem na terra! Homem na terra!”. Elas tentaram oferecer camisetas e stickers sobre inclusividade mas as tensões aumentaram. Nomy Lamm, participante do grupo de poesia falada Sister Spit, chegou interromper a sua performance e ir de encontro a confusão para defender a garota.
Em pouco tempo, o grupo inteiro estava em uma tenda, onde uma multidão de TERFs xingavam e gritavam contra o grupo que havia entrado, direcionando a maior parte de seu abuso contra a garota trans. Fazendo uma fila, as TERFs falavam coisas abusivas uma por uma contra a garota e as outras mulheres que estavam lá. Ela foi chamada de estupradora e acusada de estar destruindo a “mulheridade” (womanhood).
Uma delas chegou a empunhar uma faca e a ameaçar a garota dizendo que se ela não saísse do festival ela não sabia se iria conseguir se controlar. Ninguém fez nada em relação a essa ameaça, e o abuso continuou enquanto a garota chorava. Apesar de tudo, ela conseguiu sair do festival sem nenhum ferimento, apesar de abalada.
A disputa entre TERFs e ativistas trans e as suas aliadas continuaria nas próximas edições do festival, gerando uma repercussão intensa na mídia a nos meios ativistas envolvidos com o feminismo e com o ativismo trans. Em 2015 o festival se encerrou, deixando um legado controverso. Os embates ocorridos ao longo do festival demonstraram não apenas a propensão violenta das TERFs mesmo diante de tentativas de diálogo como também a forma que elas colonizam espaços feministas e provocam a exclusão de mulheres trans de espaços nos quais a maior parte das mulheres que o ocupam não teriam nenhum problema em aceitá-las.
Esse é o mesmo tipo de dinâmica que se viu no caso de Sandy Stone e de Beth Elliot, casos nos quais mesmo sendo aceitas nos espaços que ocupavam, as mulheres trans envolvidas acabavam deixando tais espaços para evitar conflitos e repercussões que pudessem afetar os espaços em si.
E esse é o tipo de dinâmica que segue se repetindo quando TERFs se utilizam da desinformação, da intimidação e da desumanização de pessoa trans para atacá-las em nome do feminismo e das mulheres, atacando as próprias feministas e mulheres (cis) que ousem se opor a elas.
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