Entrevista a Paul B. Preciado, por João França

Traduzido e adaptado por Inaê Diana Lieksa. Fonte de Parole de Queer.

 A escola reproduz condutas homofóbicas ou transfóbicas?

 Temos uma visão  ainda idealizada do colégio, como um espaço para a aprendizagem das crianças, como se fosse realmente um espaço de liberdade. Não se trata simplesmente de que o colégio reproduza condutas homofóbicas, transfóbicas, ou estereótipos machistas, senão que se trata de uma das instituições chave onde se leva a cabo o processo de normalização de gênero ou de sexualidade. E esse é um processo violento. Curiosamente, dois dos espaços mais violentos, o doméstico e o colégio, são aqueles que estão mais idealizados no nosso imaginário como espaços de proteção da infância. Tem que se desmistificar esses espaços. Nos anos 60 se inicia uma crítica, desde os movimentos feministas, homossexuais, e mais tarde movimentos transexual e transgênero, da violência inerente a esses espaços pedagógicos, mas ainda se tem muito trabalho para se fazer.

 Hoje a instituição colégio se encontra numa crise profunda. Por uma parte, a transformação neoliberal supôs um colapso de uma instituição que era fundamentalmente pública e vinculada à regulação estatal. Nos encontramos, portanto, numa situação inédita. De um lado, temos que defender a instituição colégio, como um direito universal, mas ao mesmo tempo, necessitamos criticar as violentas normas de gênero e sexuais nas quais historicamente se apoia.

 E esse problema está sendo abordado?

 Já há bastante gente que está levando a cabo essa crítica, mas necessitamos fazer visíveis essas lutas e estabelecer alianças. No contexto atual do Estado espanhol, há de certa forma um retorno aos valores normativos, que são invocados em algumas ocasiões pela igreja católica. O colégio é também um espaço de fabricação da identidade nacional, de normalização racial e religiosa…Precisamos de um colégio mais aberto à crítica, porque quê significa uma pedagogia que não aceita a crítica?

 Teríamos que fazer uma maré de colégios para pensar coletivamente como queremos ser educados e educar as nossas gerações futuras. Nos falta criatividade, imaginação política quando pensamos no colégio. Gostaria que houvesse um colégio que fosse suficientemente plástico, capaz de trabalhar com a riqueza de todas as subjetividades possíveis.

 Qual foi a sua experiência na escola?

 Eu cresci num colégio católico de Burgos só para gurias, no qual eu era um caso de fracasso escolar. Graças a uma professora que tinha um filho autista e montou um grupo de oito pessoas com uma educação experimental, com uma atenção personalizada, de muito respeito, eu segui adiante. Essa experiência me mudou radicalmente a vida, não só porque no colégio tradicional houvesse fracassado a nível acadêmico, senão também porque talvez não houvesse sobrevivido.

 O que faz falta são experiências como essa?

 Esse ideário de gênero, sexual, nacional, não se acaba no instituto, se segue reproduzindo. No Programa de Estudos Independentes do MACBA que dirigi até o ano passado me surpreendia ver aos meus alunos, que estavam no nível do doutorado, e que eram sociólogos ou psicólogos, mas nunca haviam estudado de feminismo, nem de lutas anticoloniais. Reivindico a possibilidade de criar uma rede de colégios, institutos, mas também de centros de formação universitária, onde se estudem o conjunto de tradições de resistência minoritária que têm tornado possível construir uma sociedade mais democrática. Precisamos de uma pedagogia radical para tempos de crise que nos ajude a construir um cidadão crítico. Esta deveria ser a tarefa do colégio e não tanto a de reprodução.

 É crítico com o modelo de escola inclusiva pelo qual se vem lutando faz alguns anos.

Há iniciativas tanto pedagógicas como políticas muito respeitáveis daqueles que trabalham com uma vontade de criar uma escola inclusiva, mas somos muitos os que vêm de movimentos minoritários e criticamos a ideia de inclusão, porque supõe tolerar ao Outro e integrá-lo à condição de que seja marcado como outro. Isto é o que Foucault chamava de “exclusão includente”. Um dos grandes problemas da escola inclusiva é que o outro resulta como uma nota de rodapé numa escola que não muda. Segue-se praticando a mesma pedagogia: se acrescenta simplesmente uma cadeira para o “diferente”, o “descapacitado”, mas não se põe em questão a epistemologia normativa da escola.

 O radical seria fazer uma crítica à norma como eixo da pedagogia, fazer uma pedagogia anti-normativa, em vez de incluir ao que é diferente. No caso das normas de gênero e sexuais, não se trata de “incluir” a criança homossexual ou transexual, senão de questionar a norma heterocentrada e machista do colégio que faz com que toda dissidência de gênero e sexual seja percebida como patológica.

 O modelo de escola inclusiva não evita um caso como o de Alan.

 O caso de Alan não é pontual nem único, é um entre tantos. Agora se está falando mais dos casos de jovens trans, mas no caso de guris e gurias queer, guris afeminados, gurias masculinas, guris e gurias são objeto de perseguição e vexações. Quê significa fazer uma escola inclusiva com uma norma heterocentrada? Faz falta uma pedagogia radical que inclua a incrível heterogeneidade de todos os alunos. Não se trata de incluir ao que é diferente, senão de crer num âmbito pedagógico no qual a heterossexualidade não é a norma.

 O que me assusta com o planejamento inclusivo são os tratamentos excessivamente patologizantes, ou médicos, da diferença: reduzir a inclusão à cadeira de rodas ou à transexualidade a disforia de gênero. O problema não é esse, o problema é a arquitetura não acessível e a normatividade de gênero. Aí está a diferença entre uma pedagogia inclusiva e a pedagogia crítica. E não falo de acabar com toda disciplina, senão de pensar coletivamente como construir um conjunto de contra-disciplinar críticas.

 Há escolas que apostam num modelo desse tipo?

 Como professor na Universidade de Nova York, tive a sorte de conhecer e ter alunos que estudaram no instituto Harvey Milk. Me contavam suas experiências, a sensação de liberdade, de por fim chegar a um lugar onde não teria que se sentir diferente, fora de um âmbito heteronormativo no qual teria que explicar quem era.

 Mas são bem poucos os que têm acesso a um colégio desse tipo.

 É um caso experimental, colégios singulares que podem servir num caso de emergência para alguém que está sofrendo uma situação de violência. Eu defendo muito mais a criação de uma rede de colégios transfeministas e queer. Não falo de colégios que surjam do nada, senão de colégios que já existem, que surjam, por assim dizer, politicamente do armário, que digam que o aluno tem direito a experimentar com sua própria subjetividade, colégios que sejam abertamente não-heteronormativos e feministas, colégios onde os alunos tenham direito a processos de mudança sem ser objeto de violência por utilizar códigos masculinos ou femininos, que não se castigue à criança que com 7, 12, ou 16 anos use uma saia. O pedagógica deveria ser trabalhar com essa plasticidade que é a base da criatividade e a transformação social.

 Então a sua proposta é que os colégios deem um passo adiante em defesa de um novo modelo?

 Me pareceria maravilhoso que houvesse um conjunto de colégios que apostassem numa pedagogia queer e dissessem que apostam em seu currículo numa educação feminista. O que significa isso? Invocar as tradições feminista, anticolonialista, … Aí radica a única mudança política na qual creio realmente. Onde estão os corpos pedagógicos, as escolas, os institutos, que decidam dar um passo a frente e dizer que querem constituir uma rede de colégios transfeministas e queer? Às vezes passa por incluir no currículo pequenos elementos que podem fazer que se falem das coisas que não se falam. E se há essa rede podemos organizar, por exemplo, toda uma série de oficinas de formação.

 Por exemplo, na minha docência de história e teoria feminista na universidade Paris VIII- Saint Denis, na França, eu incluí uma série de oficinas de gênero nas quais os alunos e alunas falavam de suas experiências de normalização e experimentavam encarnando papéis masculinos ou femininos. Era muito mais difícil falar com os alunos meninos, que acreditavam que as questões do feminismo e sexismo não lhes afetavam, até que se davam conta de que também lhes estavam impondo um determinado modelo de masculinidade. Mas no caso das alunas meninas, resultava surpreendente ver que a maioria delas falavam de ser objeto de violência.

 A realidade é que a maioria de docentes não havia escutado falar de teoria queer. Não lhes parece muito distante essa proposta de uma rede de escolas transfeministas e queer?

 No que não creio é que os docentes não experimentam cotidianamente os efeitos da violência sexual e de gênero no colégio, porque são absolutamente transversais. Um docente que esteja atento é consciente de que há alunos que são objeto de vexação constante, a guria gorda, o bobo da sala, o guri afeminado, a sapatão… Qualquer docente é consciente de que é urgente, que tem de agir, que o que se passou com Alan está passando constantemente em todos os âmbitos da educação. Não pode ser como até agora um ato heróico de um professor isolado que decide incluir tema em seu trabalho pedagógico, tem que ser uma tarefa coletiva.

 A questão é que, para levar a cabo esta crítica o docente também tem que criticar seu próprio modelo de gênero. Na França, onde trabalhei mais, até os anos 80 uma pessoa abertamente homossexual não poderia ser docente. Isto revela o alto grau de normalização heterocentrada da escola. Também rever um exame de autocrítica dos docentes e um exame de suas próprias ideias heterossexistas ou machistas.

 Tudo isso colide com um modelo escolar bem concreto. Lucas Platero nos recordava numa entrevista[1] que desde a educação infantil o currículo avalia se os guris e as gurias podem identificar seu gênero e o de outros.

 No lugar de um espaço de reprodução da norma tem que se pensar a escola como um espaço de crítica. Pode explicar que a sociedade funciona segundo essas normas, mas que dentro deste espaço nos permitiremos questionar esta norma para imaginar outras formas menos violentas de viver. No meu caso, a escola permitiu criar um mundo que dissidente a respeito da minha própria educação familiar, meus pais tiveram acesso a bem pouca educação, e em troca, me converti num ávido leitor, algo que não me contribuía o meu ambiente familiar. O colégio deveria ser um espaço de dissidência crítica, um espaço experimental. Logo seria ideal que o parlamento funcionasse da mesma maneira, que todas as instituições pudessem funcionar desse modo, no lugar de dispositivos de reprodução da violência. Como se faz? Que o conjunto de professores que não querem seguir reproduzindo esse tipo de normas sociais e de gênero se unam para pensar como fazê-lo de outra maneira. Que deem um passo adiante para elaborar uma pedagogia queer. É utópico, mas não impossível. Se não queremos que o caso de Alan se repita, não há tempo a perder, o impossível é hoje o necessário.

Nota

  1. Entrevista de Lucas Platero disponível no portal el diario.

Imagem: Projeto Transcidadania. 


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