“Erro sobre a pessoa”: criminologia e transfobia

Texto de Aline Passos.

Há alguns anos, em uma aula de pós-graduação, um estudante me disse que não gostava de criminologia. Não lembro as exatas palavras, mas o desgosto estava relacionado a uma suposta inutilidade ou ausência de praticidade das teorias criminológicas. À época, o estudante já ingressara na docência e ministrava aulas de direito penal, dogmática que, ao contrário da criminologia, ele apreciava. Ao saber disso, mentalmente citei o famoso gângster Eduardo Cunha: que Deus tenha piedade desta nação.

E Deus até agora não deu retorno…

Um caso recente de prática de ensino do direito penal chegou ao meu conhecimento e me fez ter vontade de reencontrar o ex-aluno para mostrar um exemplo da utilidade da criminologia, sabe como é, na “vida prática”. Gostaria de apresentá-lo a um ~case~ sobre como as teorias criminológicas, quando nada, podem evitar que professores de dogmática penal passem tanta vergonha em sala de aula.

Mas, primeiro, vamos ao conhecimento que o sujeito imagina ter, antes de questionar o que claramente lhe falta.

“Erro sobre a pessoa” é uma situação prevista em lei que ocorre quando um agente pretende vitimar A, mas confunde sua vítima com outra pessoa e acaba atingindo B. Neste caso, o sujeito do crime cometeu um erro irrelevante para a caracterização da tipicidade e da ilicitude da conduta. Ou seja, responde pelo crime praticado como se tivesse, de fato, atingido A.

O código penal, não sem escorregar, costuma indicar situações que impedem a caracterização da tipicidade ou da ilicitude com a expressão “não há crime”, enquanto utiliza “não há pena” ou “é isento de pena”, quando há algo que impeça a caracterização da culpabilidade. No caso do erro sobre a pessoa, um erro de tipo acidental, o correto é dizer “não exclui o dolo” ou “não exclui o crime”. Mas como isso aqui já está longo e chato, não vou me desdobrar em explicações sobre a teoria bipartida do delito, de onde derivam estas considerações. Para efeitos desta postagem, diria apenas que a imagem abaixo contém uma imprecisão dogmática.

Porém, se o que me interessa aqui é a criminologia, o deslize dogmático é o de menos.

Na imagem abaixo, um colega, professor de direito penal, à moda dos mais antigos e retrógrados manuais da disciplina, utilizou o exemplo de um macho-hetero-cis que, numa balada, depois de ingerir muito álcool, beija uma pessoa trans. E este foi “caso” utilizado para explicar “erro sobre a pessoa”.

Ou seja, não apenas o meu colega criminalizou uma relação afetiva/sexual para rebaixar a explicação de um tema da dogmática ao nível do concurseirismo, afinal, FICAR COM ALGUÉM, seja cis, trans, interssex, hétero, homo, bi, não se presta a exemplificar um crime porque NÃO É CRIME (não é vergonha, não é errado e não é da sua conta!), como também reforçou um estigma sobre as mulheres trans e as travestis enquanto pessoas enganadoras, dissimuladas, golpistas e por aí vai. Um preconceito que, como de regra, revela a ignorância de quem o propaga ao invés de alguma verdade sobre as pessoas de quem se fala. No caso, chama-se TRANSFOBIA.

Isso tudo, claro, sem falar que a construção do exemplo dado é contraproducente no sentido de inverter processos de vitimização, inclusive fatal, na nossa sociedade. Não, professor, não são os “machões bêbados” as grandes vítimas de uma SOCIEDADE MISÓGINA são, muito infelizmente, as mulheres, sobretudo as trans e travestis.

Enfim, vou parar por aqui antes que eu entre na seara da “especulação” sobre quantos homens se arrependem de sexo depois da balada e quantas mulheres o fazem, por diversos motivos…

O que eu gostaria mesmo de dizer ao meu colega é que, ao contrário do ex-aluno de pós-graduação, não despreze a criminologia enquanto saber útil à docência da dogmática, afinal, a imprecisão sobre teoria do delito teria sido nada no exemplo abaixo, não fosse a aberração criminológica que ignora a realidade que nos atravessa, e pedagógica, que faz da docência um exercício de perpetuação de preconceitos contra populações que não estão vulneráveis à toa, mas também porque quem deveria trabalhar para ampliar o conhecimento e mitigar violências faz justamente o contrário.

Pela urgente profissionalização da docência em direito penal ! Chega de amadorismo! Chega de ignorância, preconceito e violência em nome da facilitação de uma aprovação em concurso!

Lidemos com as vidas das pessoas de maneira digna ou de nada nos servirão as leis.

Imagem: Brasil Escola.


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