Texto de Camila Godoi para a blogagem coletiva do dia visibilidade trans – 29 de janeiro.
Se eu não responder “corretamente” aos testes consagrados pelos protocolos médicos e psicológicos, eu não terei a minha existência legitimada pelo estado devido à ausência de laudos que atestem que eu sou quem eu afirmo que sou: a mulher Camila Mendes de Godoi.
Cogito ergo sum?
Eu tenho que pensar em quais são as respostas consideradas “corretas” para eu poder existir, oficialmente. Eu tenho que satisfazer àqueles que se consideram “normais” e que se consideram “capazes” de decidir se a minha existência como mulher é legítima ou não. Ou seja, aos quarenta e quatro anos de idade, Engenheira formada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e já contando vinte anos de carreira docente no Ensino Superior e no Ensino Médio[1], eu sou vista pela ciência normativa como “incapaz”. E, por isso, eu dependo da benevolência de profissionais “capazes” de dizer quem eu sou.
Se eu responder “corretamente” aos testes, ganharei o “privilégio” de ser tratada como uma doente, jamais como uma pessoa “normal”. Serei marcada com um CID[2] e terei o direito de sobreviver à minha “disforia de gênero” através de uma vida regrada por uma terapia hormonal e pela sujeição a possíveis cirurgias. E deverei gratidão àquelas pessoas “normais” que tiveram a “bondade” e a “capacidade” de me classificarem como uma entidade patológica. Tudo isso porque eu não sou considerada capaz de enunciar quem eu sou.
Em um passado não tão distante, muitas pessoas transgêneras[3] viam nesta tutela médica e psicológica a única possibilidade de não serem tratadas completamente como marginais numa sociedade fortemente transfóbica: “- Por favor, tenham dó de mim e não me machuquem (muito). Acolham-me porque eu sou doente e preciso de sua caridade”.
Com o avanço do empoderamento da militância e da autodeterminação das pessoas transgêneras[4], processo esse que vem se consolidando há muitas décadas pela combatividade de seres considerados “ilegítimos” e “marginais”, as pessoas transgêneras estão se sentindo muito mais seguras para se identificarem – enquanto seres humanos plenamente capazes – e enunciarem ao mundo os seus gêneros. Nós pensamos e existimos. E somos capazes de dizer quem somos.
Daí a importância da despatologização das identidades transgêneras e a adequação do tratamento médico e psicológico às nossas necessidades, ao modo do que o ocorre com as gestantes que, não sendo consideradas doentes, ainda assim têm o direito aos acompanhamentos médicos e psicológicos pertinentes.
[1] A exposição da minha formação acadêmica e profissional não tem a intenção de me posicionar como um ser humano melhor do que outros que não tiveram as mesmas oportunidades que eu tive. Eu tenho plena consciência dos meus privilégios de cor de pele e de classe social dentro de uma sociedade tão racista e classista como a nossa. O objetivo deste parágrafo é ressaltar o fato de a transfobia ser tão poderosa a ponto de me atingir, mesmo com todos os privilégios que me blindam de uma série de violências cotidianas.
[2] Código Internacional de Doenças.
[3] Eu uso a expressão “pessoas transgêneras” como um modo de indicar os seres humanos que, por qualquer motivo, não se consideram “pessoas cisgêneras”. Portanto, no contexto deste artigo, o universo de pessoas transgêneras contém aquelas que se autodenominam travestis, transexuais, não binárias etc.
[4] Alguns autores reclamam uma ortodoxia gramatical para imputar um erro ao uso do adjetivo “transgêneras” flexionado no feminino. Alegam que o substantivo “gênero” só admite a flexão no masculino e que, portanto, somente seria possível a existência de um substantivo derivado e sempre masculino: “transgênero”. Eu emprego a palavra “transgêneras” – ao modo de um neologismo que já é consagrado pelo seu uso em muitos ambientes – como um adjetivo e que, portanto, admite a sua flexão tanto no gênero feminino quanto no gênero masculino.
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