Foraclusão do nome cisgênero e a política do significante

A resistência de pessoas cis ao termo cisgênero não é algo banal. Trata-se, sobretudo, de um sintoma sobre a forma como simbolizamos o real do sexo. Um sintoma ainda tão pouco analisado. Com Lacan vemos que a entrada do sujeito à ordem simbólica se dá através do significante do nome do pai. Teríamos aí o famoso tabu do incesto. Gayle Rubin, por sua vez, irá apontar que o que subjaz o tabu do incesto é o tabu da homossexualidade. Contudo, o que ainda permanece intocado é a cisgeneridade. Seria a transgeneridade o último tabu do sexo?

Toma-se como uma evidência da linguagem de que tanto o pai ou a mãe (os sujeitos do gênero), quanto o heterossexual ou homossexual (os sujeitos da sexualidade) são cisgêneros. Ou melhor: por não serem rotulados como cisgêneros é que são cisgêneros. Na exata medida da transparência da linguagem. Mas e quando o impensado – a cisgeneridade – irrompe enquanto opacidade? A cisgeneridade como universal, e a transgeneridade como o Outro sexo do Outro (cis)gênero: seríamos o terceiro sexo? A cisgeneridade como a passagem do não-sentido do gênero para o sentido. A transgeneridade como passagem do Outro para alteridade. Do impossível para o possível?

Simone de Beauvoir já nos apontou para a existência do segundo sexo enquanto Outro. Mas sobre pessoas transgêneras pouca coisa de fato têm sido dita. Ou melhor, muito se têm dito sobre pessoas trans* enquanto Outro, enquanto terceiro sexo. Objetos de pesquisa, escrutínio público. Objetos, não sujeitos de fala própria. Chacotas, aberrações e demais seres abjetos. Os estudos cisgêneros jamais conseguiram problematizar a cisgeneridade enquanto categoria com sua espessura semântica própria, ou seja, enquanto opacidade significante. A transgeneridade ainda é um tabu, visto que a própria cisgeneridade é foracluída do discurso. A alteridade encontra-se até hoje barrada pela cadeia de significantes que simboliza o (sexo do) humano. De psicanalistas, historiadores, antropólogos, pesquisadores queer e feministas (cisgêneros): todxs elxs se encontram sob o guarda-chuva da epistemologia da cisgeneridade, sob o retorno e repetição em torno do Mesmo (cisgênero).

O que o transfeminismo traz de novo, enquanto ruptura epistemológica? Não se trata de pensar sobre a foraclusão do nome do pai (visto que o pai sempre já foi, na verdade, o pai cisgênero), tampouco nos bastamos sobre a categoria opaca da heterossexualidade compulsória (novamente, o sujeito da orientação sexual é o sempre já lá cisgênero). Temos que pensar, a partir de um viés transfeminista, a forma como pessoas trans* são remetidas como o Outro da cisgeneridade. A entrada ao simbólico se dá, portanto, como forma de como a cisgeneridade enquanto significante é foracluída. A materialização do sexo se dá justamente aí, num vão de significantes no qual a cisgeneridade é produzida como evidência ( a partir de uma epistemologia espontânea do gênero, diria). O que se têm dito sobre complexo de Édipo ou sobre a heterossexualidade compulsória (quando se fala de gênero), é, na verdade, apenas efeito superficial de como o nome cisgênero é foracluído.

entre-gênero

Com isso estaremos devolvendo a opacidade do sexo de volta aos corpos. A opacidade própria do sexo enquanto espessura semântica. Tudo isso, por incrível que pareça, se trata da posição que o significante ocupa na cadeia.  Esta é a tarefa política do transfeminismo: apontar para a relação de alteridade para com/de pessoas cisgêneras através do significante. Propor um desarranjo político da cadeia de significantes. A política de uma palavra: cisgênero. O condensamento da disputa política sobre o sexo se dá neste espaço vazio que significa o sujeito entre dois significantes. Já vemos inclusive a tentativa de tamponamento do furo do sexo: pessoas biológicas, nascidas e verdadeiras (em oposição a pessoas trans*?). A política da cisgeneridade compulsória mostra-se, diante da alteridade, na defensiva, tendo sua coerência cada vez mais ameaçada pelx Outrx. O que era tão familiar torna-se paulatinamente mais estranho a si mesmo.

Pêcheux nos mostra que todo discurso tem um ponto possível de deslocamento, de deriva de sentidos. Iremos apontar para o impensado: de que um sexo tem sempre a potencialidade de se tornar outro. O que a foraclusão do nome cisgênero faz é mortificar/evitar o caráter lúdico do sexo. Lúdico no sentido de que o referente sobre o sexo estar aberto à polissemia. O caráter lúdico se distingue (não de forma estanque) tanto do caráter polêmico como autoritário do discurso, como nos propõe Eni Orlandi acerca do funcionamento dos discursos nestas tipologias. A foraclusão do nome cisgênero é o funcionamento autoritário do discurso do sexo: é a própria cisgeneridade compulsória enquanto discursividade. Discursividade que se marca materialmente nos corpos. Cabe a nós, enquanto transfeministas, entrar na disputa política, ensejar a polêmica. Disputar os sentidos do gênero que simbolizam o sexo do humano. Pensar o até agora impensado sobre o real do sexo: a transgeneridade é realmente o impossível do gênero?


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