Por Inaê Diana Ashokasundari Shravya.
A prevenção é a tentativa de garantir que o azar não bata à porta. Poderíamos falar das doenças, mas interessa muito mais falar de doentes. A Máquina da Indústria da Saúde depende da existência de doentes, pois eles representam única e exclusivamente lucro. O doente é o consumidor de remédio aos olhos do capitalismo e nada além disso.
Os meios de comunicação contribuem para que as pessoas leigas acreditem que suas doenças não possuem uma causa social. Dizer que uma doença possui uma causa social implica dizer que ela pode ser prevenida, não que ela é produto de um mentalismo que cria “ilusões” que bastaria você não acreditar nelas e elas deixariam de existir.
Falar de uma Máquina da Indústria da Saúde implica falar de como são produzidas milhares de apresentações comerciais de remédios no mercado, quando pouco mais de uma centena de drogas seriam suficientes para curar a maioria das doenças, assim como a medicalização compulsória. Como lidamos com um cotidiano de trabalho asfixiante, é mais do que comum que busquemos remédios que nos ofereçam uma resposta imediata aos males que sofremos. É comum, por exemplo, que pessoas implorem para enfermeiros aplicarem benzetacil, mesmo em situações onde um dipirona bastaria. Falar de uma Máquina da Indústria da Saúde não é o mesmo que falar de serviços médicos. Há pessoas que, numa atitude dualista, simplesmente aderem a uma posição de negação da ciência, confundindo esta com a Máquina da Indústria da Saúde, apoiando práticas alternativas de cuidados que não possuem verificação científica ou que já foram comprovadas que não possuem efetividade alguma.
Há uma precarização tanto na área da Saúde quanto na da Educação no contexto brasileiro. Essa precarização está vinculada à divisão social de classes. Se possuíssemos uma medicina preventiva, provavelmente também possuiríamos uma educação que nos possibilitaria reconhecer sintomas, o que provavelmente evitaria que inúmeras pessoas fossem a hospitais e postos de saúde à toa. Há pessoas que estão com um resfriado e recorrem a um posto de saúde. Enquanto aguarda atendimento, essa pessoas se infectam com vírus e bactérias patogênicas presentes no local. Como a contaminação ocorrida no local não apresentará sintomas imediatamente mas posteriormente, pois há o tempo de incubação do vírus, uma semana depois essas pessoas poderão apresentar sintomas – talvez mesmo até graves – e culpabilizarão o profissional de saúde que lhe pediu pra voltar para casa, pois seria apenas uma virose.
Eu participo de uma população que não possui o direito básico à Saúde garantido, que é a população trans. Como não possuímos acesso básico à Saúde, é comum que realizemos automedicação – no caso de hormonioterapia -. Muitas de nós anseia resultados imediatos, chegam a aplicar o dobro da dose recomendada. Na tentativa de evitar complicações de saúde por conta da hormonioterapia, muitas mulheres trans e travestis decidiram se reunir pra falar sobre quais remédios ofereceriam menos riscos e quais ofereceriam riscos maiores, como a perlutan. Nesses grupos contamos sobre nossas experiências com esses remédios, se houve algum mal-estar, se desenvolvemos alguma doença como embolia pulmonar ou trombose, aconselhamos dietas que podem auxiliar na prevenção de doenças. Esses grupos não foram criados agora durante a pandemia. O nosso acesso à Saúde não está sendo ameaçado somente agora com a pandemia. Nas décadas de 80 e 90 enfrentamos, nós pessoas trans e profissionais do sexo, um cenário extremamente assustador, que foi o da pandemia [1] de VIH (vírus da imunodeficiência humana) e de SIDA (síndrome da imunodeficiência adquirida). Nesse período nos deparamos com pessoas próximas contaminadas pelo VIH serem enterradas em caixões lacrados, pois havia o medo de que os corpos pudessem contaminar o solo. Em nossos grupos insistimos no uso de preservativos. Conseguimos lidar com o cenário apavorante, exigimos das instituições de Saúde que prestassem atenção nas nossas demandas. O Brasil se tornou referência no combate e prevenção do VIH.
A quarentena é a camisinha que cês precisarão usar. Bolsonaro é como os homens cisgêneros heterossexuais que desde a pandemia de VIH nos forçam a transar sem camisinha. Para quem não sabe, muitas das transmissões de VIH ocorreram tendo o homem cisgênero heterossexual como seu principal vetor, o qual carimbava cada uma de nós com o vírus, voltava pra casa e, se caso morresse de complicações do VIH, no óbito constaria alguma outra doença. Isaac Asimov morreu de complicações do VIH, mas isso ficou abafado durante anos. Nós, pessoas trans e profissionais do sexo, ficamos marcadas socialmente como corpos patogênicos.
Apesar de tudo, apesar de sobrevivermos no país que mais mata pessoas trans no mundo, de não termos acesso garantido a direitos básicos, seguimos lutando. Talvez seja este o momento de pessoas cisgêneras aprenderem conosco como se prevenir de doenças.
[1] Uso o termo pandemia pela extensão geográfica.
Imagem: Leona Vingativa com camisinha na mão (G1).