Textos de Daniela Andrade.
Sobre a mulher trans em foto com Janaína Paschoal e a chamando de AMIGA.
Janaína Paschoal é do partido do Bozo, e a bancada do partido do Bozo na ALESP tenta barrar a criação do Transcidadania no Estado de SP.
Janaína Paschoal criticou recentemente decisão do TJ-SP para que se devolva apostilas explicando o que é identidade de gênero a alunos da rede pública.
Segundo Janaína o TJ errou, mas ela mente dizendo que estamos querendo dizer que genética e biologia não existem, pois segundo ela homem nasce homem e mulher nasce mulher, reafirmando o binarismo de gênero cisgênero.
O que queremos na verdade Janaína é que vocês não usem a genética e a biologia para nos perseguir e discriminar, queremos que aqueles que se reivindicam LGBTIs nas escolas sejam respeitados.
Janaína também se juntou a outros deputados, como Marco Feliciano, contra o Estatuto das Famílias que visa incluir as famílias LGBTIs. Tais deputados alegam que o projeto abre brecha à pedofilia.
Janaína justificou a transfobia do seu colega de partido, Douglas Garcia, contra Erica Malunguinho, dizendo que a fala do mesmo era aleatória e não visava atingir Erica. Douglas disse em plenário que:
“se um homem que se acha mulher entrar no banheiro em que estiver minha mãe ou minha irmã, tiro o homem de lá a tapa e depois chamo a polícia”.
Janaína apoiou retirada das mulheres trans do programa estadual de proteção às mulheres.
Janaína fez post para dizer que essa mulher trans, que a chama de AMIGA, corrobora que é prejudicial a hormonioterapia de crianças e adolescentes trans.
Aí de um lado vejo LGBTI apoiando tal mulher trans que foi candidata na última eleição – inclusive veio me pedir voto sem eu conhecer.
Essas pessoas que a apoiam dizem que o diálogo é a base de tudo.
Ora, será que Hittler só matou os judeus por que eles não dialogaram?
Será que Mussolini só matou os etíopes pois os etíopes não se esforçaram para dialogar?
Será que Pinochet só matou os considerados esquerdistas e comunistas pois esses não tiraram foto com Pinochet chamando ele de amigo?
Aí você poderá dizer que Janaína não está matando ninguém.
Primeiro, será que todos aqueles que praticaram regimes de extermínio na história, começaram a executar do dia para a noite?
Depois, há diversas formas de se executar uma população, uma delas é recusar que ela existe, e a outra negar-lhe cuidados médicos.
Janaína apresentou emenda a um projeto da deputada Erica Malunguinho para acabar com a permissão para crianças e adolescentes bloquearem a puberdade. E vamos repetir que bloqueio de puberdade não é hormonização forçada. A deputada Erica Malunguinho declara que a proposta de Janaína é autoritária.
Isso ocorre atualmente no Hospital das Clínicas, referência em saúde na América Latina, seguindo extenso protocolo internacional, com equipe multidisciplinar e acompanhamento de perto pelos pais.
Ou seja, não estamos falando que um dia a criança diz que quer usar roupa de menino ou menina e no outro dia está sendo forçada a se hormonizar. Aliás, quem empurra essa mentira goela abaixo são dois grupos: religiosos fanáticos e cisativistas radicais.
Parte-se do princípio que a infância e a adolescência só podem comportar a cisgeneridade, as identidades trans seriam terrivelmente nefastas podendo corrompê-las.
Pois conversemos com pessoas trans adultas.
Eu fui uma criança e adolescente trans, mas eu não tive ajuda para entender isso, pelo contrário, tive uma família extremamente religiosa que me discriminou e me censurou de formas terríveis.
Eu sempre disse que não me foi dado o direito de ter uma infância e uma adolescência. E de fato tenho dolorosas lembranças dessa fase da vida, fase essa que geralmente as pessoas lembram com saudade.
Eu gostaria de ter tido o privilégio de ter pais que me entendessem, de ter tido o apoio para meu sofrimento psíquico àquela altura da minha vida, tentando me encaixar a todo custo nessa caixinha homem em que me disseram que a anatomia havia me confinado.
Eu sofri violências físicas, verbais e psíquicas por não conseguir me encaixar, por ousar experienciar um gênero que me disseram que era proibido.
Aprendi muito cedo que tudo que fugisse ao binário pênis/homem e mulher/vagina só podia ser obra do demônio, era algo sujo, pecaminoso, anormal, deveria ser abominado.
Aprendi a me odiar e a passar a vida toda pedido para Deus me “curar”, pois incutiram na minha cabeça de criança que aquilo era contra os propósitos de Deus.
Arruinaram a minha cabeça ainda muito cedo. Mas agora ouço que se respeitarmos as identidades trans, se respeitarmos que crianças e adolescentes se reivindiquem fora do binário cissexista, que isso irá prejudicá-las.
Mas então, e os hoje adultos trans não foram em grande parte prejudicados por terem sido forçados a viverem uma mentira?
Chamar de AMIGA alguém que quer barrar essa ajuda e esse acompanhamento é para mim o auge do escárnio.
O inimigo se apresenta de inúmeras formas, e geralmente ocorre a cooptação de alguns dentro do grupo alvo para justificarem suas políticas.
Em 1949 Simone de Beauvoir escreveu que “o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”, e vemos isso acontecendo o tempo todo nesses novos sombrios tempos de política brasileira, em que se destroi a qualquer custo políticas de inclusão da diversidade sobre o pretexto de que isso corromperia a religião cristã (num país laico, detalhe), ou que isso seria prejudicial às crianças.
Se é para se preocupar com as crianças, vejamos quantas vivem em depressão severa e mesmo tentam se matar sendo obrigadas a viver um papel, uma identidade de gênero e performar esse gênero a qualquer custo, sendo adestradas sob o cisheteroterrorismo de que para ser LGBT precisa obrigatoriamente ter mais de 18 anos.
Como se sexualidade e gênero só fossem descobertos com 18 anos.
Chamar de AMIGA tal deputada, tirar foto com a mesma sem no entanto fazer suas ressalvas, sem no entanto chamar os movimentos organizados de pessoas trans, sem no entanto chamar os pais das crianças e adolescentes trans que precisam desse apoio é ao meu ver uma atitude no mínimo canalha, para não dizer oportunista.
Não há diálogo possível com quem apresenta tal emenda a projeto de lei.
E vamos considerar o seguinte, Janaína não é uma ignorante qualquer, alguém que não tem meios suficientes para fazer pesquisas e contatar a população do estado que ela representa antes de apresentar projetos de lei.
Emendas a projetos de lei ou mesmo os próprios projetos não podem ser apresentados de forma qualquer, sem o devido debate com os protagonistas do que se quer discutir.
Os protagonistas somos nós, as pessoas trans adultas, são os pais das crianças e adolescentes trans, são os profissionais médicos e psicólogos que cuidam dessa população, são aqueles que criaram protocolos de atendimento médico e psicólogico a essa população, são os movimentos organizados de travestis e transexuais, e as próprias crianças e adolescentes.
É infame apresentar tal emenda, ainda que sob a desculpa do debate. Aliás, como deputada estadual ela possui diversos mecanismos para suscitar debates sobre identidades trans sem no entanto colocar uma faca no pescoço dos pais dessa população tratada no HC-SP e que atualmente encontram-se desesperados com a possibilidade de perderem esse apoio médico e psicológico.
E sabe o que irá acontecer proibindo essa atenção médica ao bloqueio da puberdade? O que sempre aconteceu e ninguém nunca se importou: pessoas trans muito cedo se hormonizando de forma clandestina, sem qualquer ajuda médica ou psicológica, tomando conselhos com outras pessoas trans sobre o que tomar ou não tomar.
Morrendo inclusive, tendo diversos efeitos colaterais nefastos sem que ninguém esteja nem aí.
Não é por que vamos proibir que médicos acompanhem o bloqueio da puberdade de quem não se reivindica cisgênero que a população trans nessa faixa etária irá sumir, mas continuará à margem de tudo.
E não, não se trata de se recusar o debate com Janaína, mas seja sob qualquer pretexto não há como tirar foto com tal deputada, chamá-la de AMIGA e não haver uma linha para se dirimir contra as políticas nefastas a que o grupo político de Janaína faz parte, ao partido dela, partido do presidente da República que de tudo tem feito para nos destruir.
O presidente que faz parte do partido dela sustou entrada de travestis e transexuais na universidade por meio de cotas, o que Janaína tem feito sobre isso, já que está tão preocupada conosco. Aliás, 90% da nossa população está nas ruas se prostituindo – sem qualquer amparo, nossa expectativa de vida é de 35 anos, a maioria de nós é expulsa de casa, a maioria não consegue completar o ensino fundamental.
O que Janaína como força política tem feito para que isso seja modificado, além de apresentar projeto de lei para interromper a necessária ajuda médica e psicológica para adolescentes e crianças que não se reivindicam cisgêneros?
Sabemos que as pessoas trans geralmente não abandonam a escola, mas de lá somos expulsas de forma violenta em função do ódio que existe contra pessoas travestis e transexuais, sendo discriminadas de todas as maneiras possíveis, inclusive sendo agredidas fisicamente.
Lembrar do ensino fundamental pra mim é lembrar de preconceito, é lembrar das tantas vezes que fui perseguida, xingada, humilhada por não me encaixar dentro dos estereótipos de gênero.
Se alguma pessoa trans vai tirar foto com Janaína e chamá-la de AMIGA, sem que no entanto essas questões sejam levantadas, não, não estamos falando de alguém que representa a população trans.
Não se apoia quem nos usa de forma política eleitoreira e oportunista. Não mesmo, não em meu nome.
***
Eu só me pergunto o seguinte:
– se nenhuma pessoa trans deve tomar hormônio pois são prejudiciais – vamos ignorar pessoas cis se hormonizando, tomando bombas nas academias, por exemplo, vamos ignorar tantas histórias de vida de pessoas transexuais e travestis que passaram a vida se hormonizando clandestinamente, desde bem jovem, pois nunca houve atenção médica para nós, vamos ignorar tantas que colocaram silicone industrial no corpo pois era o que lhes restava, vamos ignorar tantas em depressão, tentativas de suicídio pela total falta de amparo e a marginalização, e finalmente vamos ignorar que qualquer droga tem efeitos colaterais e que ao se prescrever se coloca na balança quais serão os ganhos e quais serão os prejuízos para aquela pessoa em específico.
– se as identidades trans não existem, transfobia não existe, é tudo invenção de “transativista”(sic) – e vamos ignorar tantas histórias de pessoas trans que foram discriminadas por toda uma vida, expulsas da casa dos seus pais por serem trans, que não conseguiram entrar no mercado de trabalho formal por serem trans, que foram apontadas, xingadas, apedrejadas na rua por serem trans, que foram esfaqueadas, que levaram tiros, que foram assassinadas.
– se há um lobby milionário “dos transativistas”(sic) para transformar todas crianças em crianças trans – vamos ignorar que o que é imposto desde sempre é que só há um destino possível e saudável: a cisgeneridade, tudo que fugir disso é sujo, anormal, repulsivo, deve ser evitado, alheado, colocado às margens, vamos ignorar que há um suposto lobby milionário mas a arrasadora maioria dessa população se prostitui nas ruas sem qualquer amparo da sociedade e do estado, retumbante maioria não consegue completar o ensino fundamental dada a discriminação, é isolada socialmente diante das diversas manifestações de preconceito.
Por que a criatura se diz trans?
Que pessoa trans é essa que é incapaz de olhar a sua volta e ouvir as dezenas de histórias de dor e violência que pessoas trans tem para contar sobre suas infâncias e adolescências?
É por isso que quando chega a eleição e me dizem que LGBT vota em LGBT, trans vota em trans, eu digo: alto lá!
Representatividade sem consciência de coletivo e sem empatia com os seus é mais perniciosa que a transfobia declarada, pois ela nos engana e nos faz cair em armadilhas.
Eu mal consigo diferenciar isso do que fazem evangélicos fundamentalistas e cisativistas que tornaram o ódio contra a população trans um meio de vida e de luta.
Se há tanto clamor em ajudar a população trans, diga o que está sendo feito para que não sejamos mais expulsas e expulsos de casa tão crianças.
O que está sendo feito para que não sejamos mais alvo de violência, discriminação e preconceito nas escolas.
O que está sendo feito para que o mercado de trabalho formal deixe de nos expulsar, fechando todas as portas até nos restar mais nada.
O que está sendo feito para impedir que nos matem, que nos esfaqueiem, que nos torturem.
O que está sendo feito para que deixem de destruir todas as nossas possibilidades até nos empurrarem para o suicídio.
Que espécie de preocupação é essa?
É a mesma preocupação que os fanáticos religiosos dizem ter em nos curar, precisamos negar quem nós somos e nos ajoelharmos diante do credo deles.
Para essa gente só existe uma única possibilidade de vivência, a que essa gente teve. A nossa deve ser ridicularizada, afrontada, marginalizada, destruída.
Não precisamos dessa preocupação de vocês. Vão se preocupar com um país bebendo veneno em forma de agrotóxicos, comendo carne com antibióticos e hormônio no churrasco.
Vão se preocupar com a epidemia do açúcar entre as crianças, trazendo diversos problemas de saúde pelo mundo.
Vão se preocupar com o alcoolismo e seus efeitos nefastos, e com o álcool sendo via de regra incentivado como único meio possível para a socialização.
Vão se preocupar com o ar poluído destruindo pulmões e causando doenças respiratórias.
Vão se preocupar com as devastações do meio ambiente, a destruição da flora e da fauna, prejudicando toda uma cadeia biológica, destruindo ecossistemas e proporcionando diversas doenças.
Vão se preocupar com oceanos e rios inundados de plástico e lixo, peixes mortos em águas apodrecidas que circunvizinham as cidades.
Vão se preocupar com as superbactérias, com a resistência aos antibióticos cada vez mais potentes, com as águas dos rios e lagos contaminados com os mesmos antibióticos.
Vão se preocupar com o extermínio de espécies inteiras na natureza, abalando para sempre diversas possibilidades de vida.
Vão se preocupar com tantas pessoas com doenças degenerativas ou crônicas que morreram sem ter qualquer possibilidade de ajuda, nos lotados hospitais, no precário sistema de saúde, no sucateado serviço médico.
Mas claro, o problema mesmo é hormônio para pessoas trans, é o lobby multimilionário “dos transativistas”(sic).
Já que querem prestar ajuda, essas almas bondosas.
Eu só gostaria de saber onde devo me dirigir para reclamar um pouco desse fundo multimilionário, pois olha, não é fácil fechar as contas em dia no final do mês.