“Mas ce tá fazendo com médico, né?”

Texto de Laura Leanora Dias.

Toda vez que eu falo que tô fazendo terapia hormonal transgênero, a primeira coisa que me perguntam é, “mas ce tá fazendo com médico né?” Todo mundo que pergunta isso é cis, lógico.

Gente, deixa eu falar. Quando ce é trans e quer fazer terapia hormonal, não é só estalar os dedos que ce encontra supervisão médica. Primeiro que a maioria das pessoas trans brasileiras só deve ter acesso à saúde pública. Agora calculem como deve ser o atendimento à pessoa trans na saúde pública. Eu não vou falar aqui de uma coisa que eu não sei, porque eu não fui procurar a rede pública sobre isso. Porém, o que eu fiz foi procurar uma endocrinologista do meu convênio, que me atendeu bem, foi receptiva comigo, mas já no retorno dos exames disse que não poderia me assistir na hormonização, tentou me encaminhar pro ambulatório de pessoas trans do Hospital das Clínicas e acabou me mandando um email dizendo que lá não estavam mais aceitando casos novos, porque a fila para cirurgia estava para 2020. Dá pra ter uma ideia da estrutura que a rede pública tem pra atender pessoas trans né?

Além de me dizer isso, essa mesma médica me falou que o atendimento do HC era pra pessoas “que realmente são transexuais”. Tecnicamente, eu não sou transexual mesmo, pois não pretendo fazer cirurgia de adequação genital, mas eu sou transgênero e desejo modificar meu corpo com hormônios. Só nisso já fica claro que a pessoa trans que a medicina pública brasileira julga digna de atendimento é aquela normativa, que deseja plena adequação ao sistema cis-binário de gênero, com alinhamento entre gênero binário e genital e tudo mais. Como eu disse pra médica que eu sou não-binária, como eu não desejo ter uma vagina, não fui considerada digna sequer de uma possibilidade de atendimento nesse rolê do HC. Ficou nas entrelinhas que eu não sou “trans de verdade”, ainda mais depois que a médica me indicou, nesse mesmo email, contatos de psicólogos e psiquiatras pra me avaliar.

Eu não vou aqui gongar a médica, porque apesar de tudo isso, considero que o atendimento foi exemplar. Ela me tratou com respeito, foi honesta comigo quanto às suas limitações, pegou meu contato e foi atrás de profissionais que pudessem me ajudar; ela não simplesmente jogou um não na minha cara. Ainda assim, ali me ficou evidente a noção que predomina na medicina brasileira sobre transgenereidade: necessidade de plena adequação ao discurso cissexista, medicina assumindo um papel de juiz de quem pode e quem não pode fazer transição, tendo como critério sempre a cisnorma. No final, parece que só são consideradas dignas de atendimento aquelas pessoas trans dispostas a se adequarem plenamente à cisnormatividade, ou seja, a se apagarem enquanto pessoas trans, a não fazerem barulho, a serem normais. Isso em nada me espanta, porque é consistente com o que tende a determinar o discurso jurídico no caso de pessoas trans, por exemplo. O que as instituições querem das pessoas trans é que elas conservem a cisnormatividade. Qualquer coisa além disso é facilmente vista como suja, anômala, loucura, problema.

Pra obter supervisão médica, tive que buscar atendimento com uma médica particular que não atende pelo meu convênio; tive que pagar com meu dinheiro. A médica é excelente e está me supervisionando de forma adequada. Mas aí eu torno a perguntar – quantas pessoas trans no Brasil podem fazer isso? Quantas pessoas trans sequer têm convênio médico? Quantas pessoas trans vão ter qualquer confiança na medicina depois do primeiro atendimento médico insatisfatório (e possivelmente escroto) que tiverem?

Por trás dessa pergunta que eu escuto tanto, eu percebo uma noção de que pessoas trans são descuidadas e imprudentes, e se hormonizam sozinhas de qualquer jeito porque querem. Fica implícita nessa indagação frequente uma certa fé na medicina como organizadora das subjetividades humanas. A mesma medicina que é a primeira autoridade a designar o gênero de todos que nascem deve ser aquela a chancelar uma mudança nessa condição. É um discurso que, ainda que admita um pouco de movimentação dentro desse eixo binário, continua negando a autoria do indivíduo na plena determinação de sua própria identidade de gênero. Fica sugerido que pessoas trans são incapazes de pensar por si mesmas, que precisam de autorizações, que só instituições têm o poder de reconhecer a validade dos gêneros das pessoas. O que eu quero dizer com esse textão é que essa pergunta é mais uma instância de transfobia subliminar aparecendo no discurso geral. A maioria das pessoas trans provavelmente se hormoniza por conta própria por ausência de opção mesmo, por medida de desespero. Pensa na pessoa que tá querendo se matar porque odeia seu corpo. Pensa se ela vai esperar finalmente achar supervisão profissional pra se tratar. O caso das pessoas transmasculinas ainda tem o agravante de que não dá pra comprar testosterona sem receita no balcão da farmácia, como você faz com estrogêneo e bloqueadores. Se ce é pessoa nb transmasculina ou homem trans e não tem acesso a supervisão técnica, ce tem que conseguir sua T no truque.

As instituições, particularmente no Brasil, ainda fazem de tudo pra que pessoas trans não existam. Isso é efetivado por meio desde violência física policial, por exemplo, até violência institucional, dificultação de acesso. Essa postura reflete a atitude geral da sociedade para com pessoas trans, e não se resume simplesmente a preconceito, mas em ignorância quanto à própria existência dessa população. A pessoa trans virtualmente não existe, ela é apagada de tudo – vida social, afetiva, profissional, oficial.

E eu não tô aqui pra dizer que supervisão médica em hormonização não é importante, pra minimizar o papel do profissional médico nisso – tanto que persisti na minha. Eu também não tenho a intenção de incentivar as pessoas trans a fazer auto-hormonização como se isso não fosse algo arriscado. O que eu tô falando é que esse médico que tem preparo pra te atender como trans é ainda figura rara na cena. O que eu tô falando é que o sistema médico em geral – ou a própria teoria médica, nesse respeito – não tem preparo nenhum pra atender pessoas trans. Vai procurar relatos pra você ver o que é ser trans hormonizado e precisar passar por um ginecologista ou urologista, por exemplo.

Então, galera, não julguem quem tá se hormonizando sozinho. E evitem fazer essa pergunta pseudo-preocupada, cheia de intenções inconscientes de punir a pessoa trans por estar lançando mão de biotecnologias para “contrariar a natureza”, como a maioria das pessoas deve pensar. É constrangedor demais ter que responder que sim, ce tá fazendo sozinhe, porque é humilhante ter que admitir que ce é deixade à deriva por instituições da nossa sociedade que deveriam te prestar total assistência. Se tem uma coisa que essa experiência tá me ensinando é isso: nossas instituições ainda frequentemente ignoram nossa existência e, quando confrontadas com sua presença ali, vão tender a reagir tentando te apagar.


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