Medo, violência e diferenças

Este texto faz parte da Blogagem Coletiva pelo dia da Visibilidade Trans*, uma colaboração entre os blogues Transfeminismo, Blogueiras FeministasBlogueiras Negras e True Love.

Por Leila Dumaresq

Não me espanto tanto com a ignorância acerca da transgeneridade. Também tive dificuldade para entender do que se tratava. E não é difícil entender porque faltam informações: É porque sobram mentiras e difamações. Mas todos sabemos que estamos em uma sociedade violenta. De tal modo que não consigo ser condescendente com a desinformação: Ela muito raramente é inofensiva, todo o tempo é nociva e é letal com uma frequência assustadora.

Também não é espantoso que tantos queiram sentir-se distantes da violência contra transgêneros. Afinal, medo é uma causa bastante plausível para alguém esconder-se em silêncio. Outros também têm esperança que a estrutura da sociedade irá protegê-las porque comportam-se “normalmente”. Esquecem-se, apavoradas, eu acho (porque este esquecimento é bastante irracional) que essa confortável “normalidade” é definida pelos agressores e não por quem está os evitando.

Esta fuga para a “normalidade” é ilusória. Porque quando uma pessoa transgênera é agredida, algo acontece com todas as pessoas da comunidade. Principalmente com as ditas “normais”. Tentarei esclarecer isso. Principalmente para você, que não é uma pessoa transgênera:

A justificativa mais comum para todo o tipo de violência contra pessoas transgêneras é que o comportamento transgênero ofende, agride e ameaça o modo de vida das pessoas “normais” como você. Num primeiro nível esta afirmação já é errada, pois não vemos por aí pessoas trans obrigando outras a comportarem-se como não desejam. Pelo contrário, no que toca o gênero, as pessoas trans estão cuidando de suas próprias vidas. Então é interessante perguntar-se por que alguém justificaria sua violência assim?

Quando expulsam transgêneros de lojas e restaurantes; Negam vagas em empregos; Também quando espancam e assassinam nos lugares escuros onde empurraram transgêneros para longe de você;  Dizem, na justificativa do repúdio aos corpos trans, que pessoas como você não devem conviver com este outro tipo de pessoa. E atribuem isso à “normalidade”. Isso é uma espécie de calúnia coletiva. Parece estranho, mas é exatamente o que fazem os agressores.

E para que esse ódio não pudesse ser atribuído a todos os cidadãos do nosso país que o respeito à dignidade de cada pessoa está na constituição; Por isso ele é garantido a todos sem distinção. Essa cláusula tão básica criminaliza a calúnia coletiva. Diz que é crime tentar tornar as pessoas cúmplices de barbárie por apelo à cidadania ou à uma definição distorcida de ser humano.

Quando indivíduos conseguem desumanizar alguém ou um grupo, você está deixando que as pessoas atribuam à sua cidadania e à sua humanidade a permissão para agredir um outro diferente. Deveríamos ser todos muito preocupados a respeito dos motivos para se agredir dentro da nossa sociedade. Deveríamos cobrar mais as autoridades destas justificativas.

Uma coisa é falar bobagens, outra é justificar violência. E se a justifica passa sem resistência, ela recebe um aval da sociedade. Isso mancha sim nossa cidadania. Os agressores não estão contando somente com a “opinião” deles. Eles sabem muito bem que mera opinião não é motivo para declarar-se inocente. Eles justificam seus atos apelando para você, dizendo que qualquer um deveria fazer o mesmo. Fazem isso toda vez que esperam escapar da punição. Eles acreditam e afirmam que a sociedade é violenta como eles. A crença pode ser delírio deles, mas quando eles se expressam livremente, ofendendo a dignidade de pessoas, tornam toda a sociedade sua cúmplice.

Não podemos abrir mão da dignidade de ninguém, sob pena de nos desumanizarmos. E obrigamos o estado a reconhecer dignidade humana sem distinção para que ele use o poder que lhe demos de modo regulador.  Quando o estado distribui direitos ao invés de garanti-los, o poder já tornou-se arbitrário. Então, não são mais só as pessoas excluídas e vulneráveis que podem ser agredidas. A qualquer momento, alguém pode decidir que você, por qualquer motivo, não é “normal” o suficiente. Pois o discurso de ódio já conquistou esse poder. E nessa sociedade, quem tem o poder são os violentos. Quem está em silêncio nessa situação de ódio contra minorias, vive a miséria de ser uma vítima em potencial, independente de quão “normal” seja.


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