Memórias trans intersecionais contra abismos cissexistas

Por viviane v.

O dia 20 de novembro, Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, Dia Internacional da Memória Trans. Dia de reverenciarmos lutas de resistência, de trazer às memórias assassinatos injustos perpetrados pelas histórias afora.

“O Brasil é o país onde mais se mata no mundo. Mais da metade dos homicídios tem como alvo jovens entre 15 e 29 anos, destes, 77% são negros”, relata a Anistia Internacional na campanha Jovem Negro Vivo.

O Brasil é o país onde mais se matam pessoas trans no mundo: no último ano, foram 113 pessoas trans assassinadas de um total de 226, segundo o relatório ‘Transrespeito versus Transfobia’ de 2014.

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Tantas Cláudias, Amarildos, tantas pessoas que o cistema procura manter invisíveis. Mais 226 pessoas trans — delas, uma parte significativa racializada — para historicizar de maneira não patologizante, com seus nomes autoafirmados, na dignidade de suas identidades de gênero.

Como a gente convive, como a gente enfrenta, como a gente resiste a estas (e tantas outras) violências normatizantes, inferiorizantes, brutalizantes? Como a gente reflete sobre as mortes das travestis que acontecem pelo mundo afora? Das pessoas trans? Das pessoas de gêneros inconformes, de castas marginalizadas, dos corpos marcados por intervenções corporais não consentidas?

Nossas resistências se fazem destas dores, destas memórias trágicas de passados e presentes, e também das memórias que vamos produzindo a cada momento: nossas existências e nossos corpos, sobreviventes a racismos e cissexismos intersecionalmente localizados, produzem as histórias, afetos e esperanças que perfuram o véu higienista+elitista branco+cisgênero e mostram que, sim, a história é nossa. Apesar de todos pesares.

Mesmo que constantemente ameaçada de extinção por uma série de dispositivos de poder, a história é nossa. Nós também a escrevemos, cantamos, dançamos e vivemos, esteja isso catalogado em bibliotecas e acervos ou não, esteja isso sendo analisado por pessoas acadêmicas ou não, esteja isso tipificado em manuais médicos de maneira humanizante e competente ou não.

Que nossas memórias trans, que as memórias das sociedades com ‘outras’ perspectivas de gênero e todas as resistências contra branco-supremacismos, sirvam como ferramenta para enfrentarmos todos os abismos racistas e cissexistas que pairam (como espectros de passados que temos de enfrentar) sobre mundos, instituições e espíritos.

Que possamos empreender exercícios descoloniais que nos permitam transpor os abismos dentro de nós, entre nós e as pessoas que nos são queridas e amadas, entre nós e os mundos nos quais nos inserimos. E que, se alguns deles forem intransponíveis, que convivamos com eles criticamente, reconhecendo-os, compreendendo os distanciamentos, dificuldades e dores que provocam.

Consciência, memória e crítica, contra todos abismos provocados por racismos e cissexismos. Que este dia 20 de novembro de 2014 propicie novos diálogos, ampliações intersecionais de lutas, alianças mais intensas no desmantelamento de cistemas.

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Abaixo, uma transcrição breve de um momento que me inspirou a escrever o texto acima, na casa onde morei por muito tempo com minha família, antes de minha autoidentificação e apresentação como viviane. A gravação é de uma visita breve que fiz a ela, em setembro de 2014.

[gravação transcrita em 18-11-14, pela 1h da manhã, beck rolando de leve]

18 de setembro de 2014, aproximadamente meio-dia — dez pra meio-dia.

Eu tou aqui em casa, fumando um… no quintal da casa de minha família, que é um espaço que me traz sentimentos complexos, porque aqui me traz uma calma, uma familiaridade, mas ao mesmo tempo me traz dor, me traz ideias de controle, me traz as inquietações de outros momentos de minha vida. É nesse quartinho ao meu lado que eu me ‘montava’, por exemplo, na adolescência, com as roupas emprestadas — emprestadas, entre aspas, pois era escondido que eu fazia estas ‘montagens’.

Esse espaço da casa é muito doido. E, enfim, pensando nos abismos que são gerados entre minha existência e a existência de meus pais, minhas irmãs… estes abismos surgem por conta das premissas cisnormativas que geram essas quebras de compreensão, de inteligibilidade, de humanização, em um certo sentido.

É, eu quero pensar sobre isso. Em como os processos descoloniais de gênero, por exemplo, são potentes na medida em que se efetivam projetos e tentativas de gerar pontes entre estes abismos. É.. quem sabe atravessar, até mesmo fechar alguns desses abismos.

Fechar os abismos dentro de nós mesmas, também. Fechar os abismos forçados que separam viviane e Douglas… os abismos que separam as diferentes partes de nós mesmas [via Audre Lorde], que estabelecem divisões entre nós e os mundos de fora.

O mundo é um lugar de muita dor. E talvez a busca por justiça nesse mundo não seja por um mundo sem dor, mas um mundo com menos dores possível, de acordo com nossas possibilidades materiais, intelectuais e culturais — e todas estas esferas, elas são dinâmicas através das histórias e culturas e sociedades. [via Amartya Sen, ‘The Idea of Justice’]

Eu acho que alguns abismos são intransponíveis. E o exercício descolonial às vezes é, também, o de conviver com certos abismos, de reconhecer sua existência criticamente. Neste sentido, não se culpando necessariamente pelos abismos, mas sabendo atribuir às normatividades socioculturais a responsabilidade, ou o cerne, da existência desses abismos.

Acho que o exercício descolonial vai nesse sentido, de desaprender ou de conviver melhor com as perdas derivadas dos processos coloniais de dominação e inferiorização das gentes. Como podemos refletir sobre as mortes das travestis que acontecem pelo mundo afora? Das pessoas trans? Das pessoas de gêneros inconformes, de castas marginalizadas, de tantos corpos marcados por intervenções corporais não consentidas?

Como a gente convive, como a gente enfrenta, como a gente resiste a essas esferas socioculturais normatizantes, inferiorizantes, brutalizantes?

vela


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