Meu corpo não existe

por Paul B. Preciado.  Traduzido e adaptado por Inaê Diana Lieksa

 Se a lei não reconhece a minha nova identidade de trans, minha voz, meu visual, meu sexo desafiam diariamente os ditames da diferença sexual.

 A administração contínua de testosterona provoca mutações cada vez mais evidentes no meu corpo, ao mesmo tempo que empreendo um processo legal de redesignação sexual que deverá me permitir, se o juiz aceita o meu pedido de mudança do prenome na minha carteira de identidade. Os dois procedimentos – bio-morfológico e político-administrativo- não são convergentes. Embora o juiz considere as mudanças físicas (suportado por um indispensável diagnóstico psiquiátrico) como as condições de redesignação de prenome ou de sexo à minha pessoa legal,  essas mudanças não podem em nenhum caso ser reduzidas à representação dominante do corpo masculino, de acordo com a epistemologia da diferença sexual. Conforme me aproximo da aquisição do novo documento, eu percebo consternado que o meu corpo trans não existe aos olhos da lei. Realizando o ato do idealismo político-científico, os médicos e os juízes negam a realidade do meu corpo trans a fim de continuarem a afirmar a verdade do regime binário sexual. Então existe a nação. Então o juiz existe. Então o arquivo existe. Então a carteira existe. Então o documento existe. A família existe. A lei existe. O livro existe. O centro de internação existe. A psiquiatria existe. A fronteira existe. A ciência existe. Mesmo Deus existe. Mas o meu corpo trans não existe.

 Meu corpo trans não existe nos protocolos administrativos que  asseguram o estatuto de cidadania. Ele não existe como encarnação da soberania masculina ejaculante na representação pornográfica, nem como meta de vendas nas campanhas publicitárias das indústrias têxteis, nem como referente das segmentações arquitetônicas da cidade. Meu corpo trans não existe como variante possível e vital do humano nos livros de anatomia, nem nas representações do aparelho reprodutivo saudável dos manuais de biologia do liceu. Discurso e técnicas de representação não acreditam na existência do meu corpo trans, que é tratado como espécime pertencente a uma taxonomia da desviação que deve ser corrigido. Eles afirmam que ele só existe como corolário de uma etnografia da perversão. Eles declaram que os meus órgãos sexuais não existem, senão como défice ou prótese. Fora da patologia, não há representação apropriada dos meus seios, da minha pele, da minha voz. O meu sexo não é nem um macroclitóris, nem um micropênis. Mas se o meu sexo não existe, então o que faz meus órgãos permanecerem humanos?. o crescimento do cabelo não está em conformidade com as instruções de uma retificação da minha subjetividade no sentido de masculinidade: no rosto, o cabelo cresce em lugares que não têm significado óbvio, ou param de crescer onde a sua presença indicaria a presença “correta” de uma barba. O rearranjo da massa corporal e do músculo não me tornam mais viril. Simplesmente mais trans: embora essa designação não cumpra a tradução imediata em termos do binômio homem-mulher. A temporalidade do meu corpo trans é o presente: não se define pelo que foi nem pelo que lhe é suposto se tornar.

 Meu corpo trans é uma instituição insurgente livre de constituição. Um paradoxo epistemológico e administrativo. Devir sem teologia nem referente, sua existência inexistente é a destituição tanto da diferença sexual, quanto da oposição homossexual/heterossexual. Meu corpo trans se volta contra a língua daqueles que lhe nomeiam pela negação. Meu corpo trans existe como realidade material, como um conjunto de desejos e práticas, e sua existência inexistente coloca tudo em jogo: a nação, o juiz, o arquivo, a carteira, o documento, a família, a lei, o livro, o centro de internação, a psiquiatria, a fronteira, a ciência, deus. Meu corpo trans existe.

Fonte: http://www.liberation.fr/debats/2016/06/24/mon-corps-n-existe-pas_1461833

Imagem: Voo das Andorinhas, de Giacomo Balla.


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