Texto de Magô Tonhon para a blogagem coletiva do dia da visibilidade trans – 29 de janeiro.
A máxima de que somos pessoas solitárias e que a solidão está inscrita no momento de nosso nascimento e de nossa morte não vale para mim. Nasci gêmea. Eu e um irmão, idênticos, univitelinos por dividirmos a mesma placenta em ambiente uterino. Desde minha mais tenra infância tive-me de haver com as particularidades que só duas crianças gêmeas tem ideia. O apagamento da diferença, certamente não fora algo consciente, mas já se inscrevia em nosso vestir. Eram roupas idênticas para gêmeos idênticos. Salvo algumas exceções onde os eram modelos iguais, mas de cores diferentes.
(eu sou a emburrada mas não me lembro o motivo, rs)
De modo que não seria errado afirmar que toda a história de meu devir identitário foi caracterizado pela luta em distinguir-me de meu irmão gêmeo. Assim eu assumi rapidamente a identidade da rebeldia sendo assim chamada: a Do-Contra. Mamãe jamais compreendeu que não eram apenas as cores que nos diferenciariam e passou a levar-me consigo quando pretendia comprar roupas. Mesmo os modelos diferentes não me cabiam. Era a minha identidade em eterno borrão diante dos muitos provadores de roupa por onde passei.
Aos nove anos assisti ao filme americano “Os Batutinhas” em que um dos personagens respondia a pergunta de outro: você sabe a diferença entre um homem e uma mulher? – “homens tem pênis e mulheres tem vagina!” Eis a primeira pílula de cisgeneridade em mim depositada. Até pouco mais de 22 anos esta era a minha definição basilar.
Na medida em que entrei em minha adolescência minha identidade destoava ainda mais da de meu irmão. Ele parecia encarnar fielmente as expectativas de papéis sociais de gênero depositadas num garoto: apaixonou-se por meninas, colecionava playboys, dono de um humor explosivo e de pouca paciência. Já eu habitava o extremo oposto. Observando, mas sem entender totalmente, o papel destinado à única mulher de uma casa com muitos ~homens~ numa família de classe média eram inúmeras as tarefas que desde sempre minha mãe tomou para si. Ela fazia tudo, cuidava da cozinha a lavanderia e todos os afazeres. Comecei desde sempre a ajuda-la apesar de nunca entender direito a naturalização dos ‘papéis’ destinados aos homens, às vezes utilizada para justificar a falta de apoio por parte de meus irmãos e meu pai nas tarefas domésticas. “Mas e eu?” Pensava.
Permeada pelas desavenças fraternas, assim fui logo identificada enquanto bicha, viado, mulherzinha [na máxima ignorância e confusão fundamental entre identidade de gênero e orientação sexual]. De modo que quando entrei na faculdade, com 18 anos, passei da vergonha para o orgulho de ter assim, uma orientação não normativa. Desde lá ~gay~ não me servia totalmente e negava rotular-me. Mas nada me dizia quanto à minha identidade, tal pertencimento. Seguia-se o borrão identitário. A leitura social que me cabia era sempre ouvir das pessoas alheias ao meu convívio o emprego do pronome feminino ao referir-se à mim. Relembro aos risos até hoje o dia em que a enfermeira do campus onde eu estudava se aproximou de mim convidando-me para aproveitar a oportunidade de poder realizar o exame ~papa nicolau~ pela primeira vez e ainda bem que não fui! Voltei à sala de aula e convidei a todos para que se cuidassem e fossem realizar o tal exame. Só alí soube que se tratava de um exame destinado a portadores de vagina.
Em contato com o meu primeiro emprego em uma loja de roupas prioritariamente femininas pude então revisitar o guarda-roupas dito ~de mulher~, o interdito, o proibido. E reiteradas vezes, reforçadas e sublinhadas tais interdições por parte de meus supervisores gays cisgêneros. Não me era permitido utilizar-me de uma blusa ~com corte feminino~ pois eu não era mulher!
Sempre possuí traços de ansiedade, como o hábito de roer unhas, mas numa manhã de janeiro de 2013 acordei e ao levar as unhas à boca senti asco. Parei de roer unhas inexplicavelmente e depois de algumas semanas, pela primeira vez me vi diante de um cortador de unhas. Não consegui e decidi usar a lixa. E nunca mais cortei. Mais tarde, decidi colocar uma cor.
(num dos primeiros cuidados com as unhas)
Hoje vejo, que para além de legitimar apenas as unhas não roídas como sadias ou corretas e mais, para além de ~reforçar qualquer estereótipo de gênero~ mais especificamente de mulheridade, a unha fora o meu primeiro ato político humano absolutamente íntimo e livre. Minha identidade de gênero estava alí expressa a materializar-se sem que nem eu me desse conta. Afinal de contas qual o problema de usa-las coloridas?
E com elas enfrentei com bastante receio, mas também firmeza a todos os questionamentos subsequentes. Na mesa do almoço com meus pais e meus irmãos ao manusear os talheres com as unhas coloridas. Trabalhando no comercial de uma loja de roupas, reagindo de maneira natural a toda sorte de comentários, fossem dos clientes ou dos supervisores que tentavam destituir-me de minha convicção por reiteradas vezes. Abriram mão de seu intento dado meu talento e minha capacidade ao desempenhar as vendas que comigo haviam se multiplicado bastante. Mas restringiram as cores: eu só podia usar esmaltes pretos!
Dois anos após elas aparecerem em minhas mãos compreendi sua relação com minha identidade e hoje as ostento, jamais para oprimir quem não toma para si tal excesso de zelo, mas como representações legítimas de meu empoderamento enquanto mulher transexual.
Foram elas que para mim, intimamente serviram para que eu questionasse e pudesse iniciar a compreensão de meu real pertencimento de gênero. Por meio de sua aparição trivial pude de maneira honesta me olhar, me ver e assim reparar. Até os dias atuais, pelo menos uma vez por semana durante cerca de duas horas me dedico a lixa-las, poli-las e colori-las.
(minhas unhas e eu)
Conseguem enxergar os inúmeros processos transfóbicos que permearam minhas vivências? Mas a minha primeira transfobia fora de fato a completa ausência de referenciais representativos do que eu realmente era sem saber que era possível sê-lo. A minha primeira transfobia fora então, a ausência de uma representatividade transexual para que eu pudesse entender que identidade de gênero, independia de qualquer configuração genital. A minha primeira transfobia fora a cisnormatividade compulsória, onde só era possível não-ser o que me era destinado. O gênero que nunca me coube, nunca me pertenceu e nem se fosse completamente reformado ainda não me caberia.
Ser mulher era sequer uma possibilidade. Eis minha primeira transfobia.