Misandria sob um olhar pragmático

Texto de Ares Saturno.

É difícil debater o tema da misandria dentro da militância feminista. Um dos riscos é soar como se estivesse defendendo absurdos semelhantes ao racismo inverso ou magrofobia. Então me apego ao pragmatismo de quem deseja uma vida mais segura para ontem, não entrando em pormenores como discutir a estruturalidade de tal violência. Esse texto tem como objetivo olhar por um outro ângulo o fenômeno do discurso de ódio contra homens.

Defendo que a misandria seja um braço do patriarcado.

Pra isso sequer fazer sentido, é preciso entender quais homens estão sendo agredidos com essa misandria. Não é o estuprador que tá colando nas festinhas. Não é o filho do dono da empresa que está de férias em Paris enquanto você vai ter que freelar no carnaval. E definitivamente não é o marido abusador que bate na esposa porque a janta não está boa.

É o porteiro do condomínio que é tratado com desrespeito pela senhora de família que recebe pensão por ser filha de militar equivalente a 10 vezes o aluguel que ele pode pagar.

É a bicha periférica que toma lampadada na cara enquanto tem gente postando no facebook que homem de saia e batom é festejado.

É o menino de 6 anos de idade que cresce ouvindo a mãe e a irmã dizendo que ele é burro, limitado, insensível e incapaz por ter nascido amab e acaba tendo angina e infarto aos 45 anos de idade porque não se sente capaz de verbalizar o próprio sofrimento.

É o moleque da terceira série que perde a noção de esforço e recompensa por acertar tudo na prova mas receber nota C porque a letra no caderno não é redondinha.

É o adolescente neuroatípico que apanha no colégio porque é sensível demais.

É o namorado emocionalmente dependente traumatizado pela namorada que tem ciúmes patológicos e sofre violência física cotidianamente, mas ninguém leva a sério porque ele tem 1,83m de altura e ela tem 1,65m.

É o homem assexual que é coagido a ter uma vida sexual que o machuca, se não sua esposa o acusa de estar tendo um caso extraconjugal e fiscaliza seu celular.

É o garoto trans que se sente culpado por desejar uma faloplastia nesse mundo falocêntrico e termina a noite se mutilando por disforia genital.

É a pessoa amab não binária que tem sua identidade posta sob questionamento alheio ao ser pressionada a esconder a barba e performar feminilidade pra não envergonhar as manas trans binárias.

É a mulher trans pré – transição que toma um “não se mete nessa discussão, macho!” de mulher trans já transicionada no facebook, baseada apenas em foto em nome de perfil.

É a criança amab trans durante toda sua infância na família, no colégio,  na convivência social, até no consultório da psicóloga.

Em resumo: é toda pessoa que desafia a noção do que o macho hegemônico dominante deve ser para manter o poder patriarcal do status quo masculino. Ou, como eu gosto de dizer, toda pessoa que ameaça a masculinidade tóxica.

Ora, se a misandria serve para machucar masculinidades não – padrão enquanto o macho alfa sai ileso, que raio de serviço isso está prestando ao feminismo?

Ao meu ver, a masculinidade está em franca reforma frente aos avanços sociais que a luta por equidade de gênero conquistou nas últimas quatro décadas. Surge o homem que escuta o que o feminismo tem a dizer e adequa sua masculinidade a não fagocitar o poder que lhe seria atribuído simplesmente por ter nascido sob o gênero privilegiado.

Seja o youtuber nerd que, consciente da problemática de gênero no meio em que vive, usa sua influência pra alertar os outros meninos nerds que não é admissível assediar as cosplayers ou pra dar visibilidade pra garotas gamers com campanhas, sabendo que é privilegiado nesse sentido; seja o gay cis que iniciou uma start up de publicidade e faz questão de ter como sócia a amiga lésbica da contabilidade e a designer trans que sofrem exclusão imensa nesse mercado de trabalho. Há uma inegável reforma da masculinidade tóxica que, fora da militância virtual e acadêmica, não usa da consciência do seu privilégio pra angariar cookie,  mas porque acredita de coração que o mundo é melhor em equidade e faz sua parte pra isso.

É esse o homem que está sendo machucado quando você posta “não tem espaço pra macho no feminismo”. O cara que tá a fim de aprender e levar essa demanda pro círculo de convivência dele, pra mulher não precisar lidar com o machão tóxico de fato perigoso que vai se recusar a mudar. O cara que vai problematizar abertamente quando a galera da empresa tiver fofocando que a mina que virou chefe só conseguiu a promoção porque pagou boquete pro diretor geral. É o cara que não vai proteger por broderagem o amigo que colocou boa noite Cinderela na bebida da gata na balada e ainda vai se dispor de bom grado a testemunhar pra ela no tribunal, sabendo como a justiça trata mina que denuncia esses crimes.

Tiro no pé. Puta tiro no pé.
O patriarcado aplaude isso aí.

Aplaude porque nada abala mais a hegemonia do macho padrão que o levante de uma geração que abre mão dos próprios privilégios por consciência. Nada que a classe oprimida estruturalmente faça tem tanto impacto no opressor, infelizmente, quanto pessoas que poderiam ser opressoras mas optam por não fazê-lo e ainda colocar caroço no angu de quem faz.

O mundo real tem homem cis. Nossos empregos, as instituições públicas e o Estado, nossas famílias, nossas cidades. Tudo cheio de homem cis. E precisamos conviver com eles. Mais fácil e pragmático seria a militância manter diálogo com a parcela esclarecida dessa população pra somar força de mudança ao invés de informar a esses caras que eles são tão ruins quanto os outros, porque a gente sabe que não são.

A esperança agora é que essa reforma da masculinidade seja firme o suficiente pra sobreviver a um feminismo que dá tiro no pé e desencoraja a desconstrução do próprio algoz.
Nota: amab, em inglês, sigla para assigned male at birth – assignado ao nascer como homem.

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