“Mulheres com Dilma”, o machismo de Lula e os limites das políticas identitárias

Faz tempo que não escrevo aqui e talvez não seja a melhor ideia quebrar meu “sabático” do blogue com política, afinal política é sempre um assunto difícil e complexo. No entanto, os últimos acontecimentos nesse (e em outros países) me instam, como socialista, ao debate.

Tenho percebido (e sentido) nas últimas semanas a pressão que a base governista (mas não só) tem imposto à esquerda para que defendamos o governo. Por mais que muitas pessoas críticas ao governo e/ou da oposição de esquerda deixem bem claro que defender a “democracia” ou ser “contra o golpe” não incorre em defender o governo, na prática é o que tem ocorrido, infelizmente. Falo isso principalmente em relação ao ato do dia 18, chamado por setores governistas que inevitavelmente sequestram as pautas para defender Lula e/ou Dilma. A nota da CUT chamando a linha “mulheres com Lula” é um dos exemplos disso. O risco dessas pautas serem facilmente sequestradas pelo governismo se dá em grande parte, a meu ver, pelo fator “abstrato” delas: “pela democracia” ou “contra o golpe” são pautas pouco concretas que facilmente podem ser distorcidas para defender o PT. Nesse cenário fica difícil, inclusive para a esquerda socialista, se diferenciar do PT e denunciar seus ataques anti-trabalhadores ao mesmo tempo que coloca que trocar Dilma por Temer não fará muita coisa pelos trabalhadores.

Por isso, acho que precisamos, à luz do debate fraterno socialista, pontuar algumas questões que atravessam o feminismo e a política no geral, atualmente.

A questão que vigorou semana passada: “Lula é machista?”

 Eu diria que sim, na mesma medida que a esquerda (e a direita) é, no geral, machista. Não foi o áudio de Lula que me instigou a criticá-lo como machista – embora tenha me indignado na época – e sim o fato de que Lula e o PT fizeram muito pouco pelas mulheres. Muito se elogia os programas do PT – especialmente aqueles criados ou ampliados durante o governo Lula – porém numa análise mais profunda são programas populistas com pouco ou nenhum impacto no sistema, não resistindo à crise do capitalismo como vemos agora. Algumas feministas negras colocam que o governo do PT tem seus méritos em função da adoção das cotas e do acesso ao ensino superior, e inclusive postam relatos de muitas mulheres que conseguiram estudar e se formar durante o governo Lula. Sim, de fato, a ampliação das universidades e dos programas sociais promoveram bem-estar social, mas ao mesmo tempo o PT deixou intocados – ou pior, estimulou – o setor privado das universidades em detrimento das públicas. Hoje o resultado é a crise do PROUNI e do FIES, onde milhares de pessoas de baixa renda estão tendo dificuldades de acessar esse benefício, muito embora nunca antes as universidades privadas tenham lucrado tanto. Enquanto isso, as universidades públicas sofrem com os cortes massivos e a falta de verba até para seu próprio funcionamento. Além disso, as cotas são um ganho do movimento negro que até hoje luta para ter seus direitos respeitados em muitas universidades que ainda resistem. Não foi dado de graça e certamente poderá ser removido com muita facilidade pelo próprio governo se acharem conveniente. Lembrem-se, seja governo do PT, PMDB ou PSDB, os ataques aos trabalhadores e às políticas públicas só começaram. Todos os ganhos que conquistamos a duras penas dentro do sistema capitalista poderão ser revogados se assim a classe capitalista entender necessário para se manter.

Nesse contexto, falando um pouco sobre a questão das mulheres, queria lembrar que a Lei Maria da Penha foi conquistada depois do Brasil ter sofrido consecutivos constrangimentos internacionais, inclusive pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Maria da Penha esperou 25 anos para que a lei que leva seu nome fosse sancionada pelo ex-presidente Lula, em 2006, graças à luta do movimento feminista (e da própria Maria da Penha) e da pressão internacional. Por isso, temos que lembrar que o machismo é uma questão estrutural. Lula não é machista (só) porque disse este ou aquele termo (que, inclusive, não é consenso no feminismo), mas sim porque instrumentalizou (e instrumentaliza) o movimento das mulheres para si e para o PT. A luta das mulheres não deve servir a este ou aquele partido, mas sim à própria libertação e melhora de condições de vida das mulheres. 10 anos depois da Lei Maria da Penha, os casos de feminicídios aumentaram e o judiciário continua machista. As defensoras e profissionais do direito que trabalham nas delegacias especializadas e/ou nos centros de apoio às mulheres fazem reais malabarismos jurídicos para tentar garantir o mínimo de proteção às mulheres. Isso tudo é fruto da falta de uma mudança estrutural eficaz capaz de realmente melhorar as condições de vida das mulheres e não só dar crédito para parcelar eletrodomésticos ou eletroeletrônicos. Falo mais disso a seguir.

Neoliberalismo revestido de esquerda

 O governo Lula conseguiu passar reformas que FHC nem sonhara. A mudança do fator previdenciário é um exemplo disso. Veja a chamada o UOL, em 2003:

“A reforma da Previdência aprovada hoje em segundo turno pelo plenário do Senado é a primeira grande vitória do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Congresso Nacional. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tentou alterar o sistema previdenciário nacional, mas, em oito anos de mandato, só conseguiu implementar mudanças no setor privado referentes aos aposentados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).”

A reforma da previdência de 2003 atacou os servidores públicos, os pensionistas e aposentados. E hoje o governo Dilma intenciona passar outra reforma que atacará ainda mais o setor previdenciário, sempre favorito por representar uma parcela grande do PIB (até porque é um gasto progressivo à medida que as pessoas vão envelhecendo e se aposentando).

O governo Lula foi marcado pelo aumento do poder de crédito, o que deu uma falsa sensação de ascensão social. Enquanto agora podemos comprar uma TV de LCD, geladeira, fogão e smartphones parcelados, grande parte da população continua morando longe do trabalho, se submetendo a longas horas num transporte público cada vez mais caro e mais sucateado, vivendo cada vez mais longe, nas comunidades ou dividindo quitinetes (agora gourmetizadas e chamadas de “studios”) com 3 ou 4 pessoas. O setor imobiliário também foi um setor intocado durante esse governo e a especulação expulsa cada vez mais pessoas do centro para a margem, a ponto do próprio Guilherme Boulos do MTST falar que os programas sociais de moradia “enxugam gelo”, porque a especulação imobiliária é uma máquina de produzir sem-teto. Nunca antes as empreiteiras ganharam tanto: elas podem construir moradias populares com dinheiro público e entregar essas unidades em péssimas condições e sem fiscalização nenhuma. Nunca antes os bancos lucraram tanto; nunca antes as universidades privadas lucraram tanto, enquanto demitiram centenas de professores doutores para contratar especialistas e, assim, sucatear o ensino superior.

Tudo o que ocorre agora é sintoma da administração que o PT escolheu. O PT escolheu gerenciar o capital ao invés de o enfrentar e foi bem-visto aos olhos dos capitalistas porque tinha o poder de instrumentalizar as lutas sociais, controlando as centrais sindicais a seu favor através da burocracia sindical. Ainda hoje, o papel da CUT e movimentos sociais ligados ao PT serve para atravancar as lutas sociais e imobilizar a esquerda, cada vez que apelam ao discurso do medo para instar os movimentos a defender o governo. É justamente esse “vai-não-vai” que neutraliza a esquerda e cria terreno para a direita crescer. É preciso romper com qualquer ilusão nesse governo e fortalecer a esquerda e o feminismo socialista, o que nos leva ao próximo ponto:

“Mulheres com Dilma” e as políticas identitárias

 O pressuposto da práxis feminista passa pela razoabilidade de acordarmos em um ponto: as mulheres são consideradas categoria inferior nessa sociedade machista e capitalista e por isso precisamos lutar contra o machismo e o capitalismo. Ainda que minha solidariedade esteja com Dilma no que diz respeito aos ataques machistas que sofre, isso é bastante insuficiente para que eu seja ou defenda o “mulheres com Dilma”. Isso se dá na exata medida em que eu não tenho ilusões feministas em Dilma (ou em qualquer outra mulher) simplesmente por ela ser mulher. Ser mulher não é suficiente; tanto isso é verdade que o governo Dilma trabalhou contra as mulheres ao se distanciar da questão do aborto, até prometendo a setores fundamentalistas não sancionar ou trabalhar a favor de nenhuma lei ou mecanismo que pudesse descriminalizar o aborto. Além disso, Dilma extinguiu a Secretaria de Políticas para as Mulheres (e da Igualdade Racial e a dos Direitos Humanos), fundiu tudo numa secretaria só para economizar dinheiro e quase colocou um homem à frente e, se não fossem os movimentos sociais, teria ficado por isso mesmo. Ainda além, os ataques das MPs 664 e 665 dizem respeito especialmente às mulheres uma vez que ataca as pensões das viúvas e o seguro-desemprego. A medida que aumenta o tempo para se receber o seguro desemprego é particularmente impiedosa com as mulheres negras que têm mais dificuldade do que as brancas de se empregar e se manter nos empregos, uma vez que sofrem assédio machista e racista. O assédio em relação ao cabelo negro, por exemplo, é uma das muitas questões que atravessam o cotidiano racista da população negra. O exército e a PM continuam ocupando as comunidades e assassinando a população negra e pobre; a PF continua assassinando e reprimindo a população indígena para levar à cabo os projetos “progressistas” que favorecem as empreiteiras. Todos esses fatos nos levam à mesma questão: no capitalismo, as políticas identitárias tem um limite muito demarcado – o econômico – e a democracia sempre funcionará a favor de uns e contra outros.

Sem socialismo não venceremos a luta contra as opressões

O fato dos EUA ter o primeiro presidente negro, Barack Obama, não melhorou as condições de vida da população negra. O fato do Brasil ter tido a primeira presidenta também não melhorou as condições de vida das mulheres. Na realidade, como eu disse, o feminicídio aumentou nos últimos anos e as mulheres no geral continuam ganhando menos que os homens. As mulheres negras ganham ainda menos que as brancas e as mulheres trans* nem empregadas estão. Não vou me aprofundar nas questões LGBT porque esse texto já está suficientemente longo, mas basta saber que a situação é a mesma, o governo rifou os direitos LGBT frente a ameaça dos fundamentalistas. A última campanha de Dilma foi um estelionato eleitoral e um soco profundo no estômago das minorias que depositaram confiança em Dilma. Sabemos que diante das crises econômicas capitalistas o elo sempre rompe no lado mais fraco. Por isso, a minha intenção com esse texto é mostrar que as políticas identitárias não acabarão com as opressões. O fato de termos esta ou aquela mulher numa posição de poder não garante nada. O fato da Caitlyn Jenner ser uma mulher trans* rica favorece pouco – ou até piora, dada suas declarações de direita – a condição de vida da população trans*. Somente uma abordagem socialista dessa questão tende a atacar as raízes das opressões, raízes que também são econômicas. Se tem algo que nos une, é o fato de todxs sermos exploradxs pelo capitalismo e o fato de que nossos corpos e nossas vidas não valem de nada. A dupla e tripla jornada de trabalho das mulheres não é só uma questão do machismo, mas também do fato de que, no capitalismo, os trabalhadores homens precisam se manter para a continuação da exploração. Esse trabalho não pago é necessário ao capitalismo para que os trabalhadores estejam limpos, alimentados e que haja novos trabalhadores no futuro (os filhos). A tal família tradicional nada mais é que um mecanismo capitalista de autoperpetuação.

Tá, mas e aí?

 Embora eu acredite que a esquerda socialista tenha um longo caminho a percorrer para enfrentar a questão das opressões, eu vejo pouca ou nenhuma potência nos textos que se dedicam a simplesmente denunciar suas falhas. Precisamos de alternativas, precisamos de pontes, de formas de transpormos as barreiras que nos dividem. O movimento negro, o feminismo e o movimento LGBT precisam unir-se entre si e unir-se ao movimento dos trabalhadores. E a esquerda socialista precisa reconhecer que dedica pouca atenção às questões das opressões, muitas vezes figuradas como apenas mais uma pauta no fim do rol das pautas “mais importantes”. Precisamos des-hierarquizar as opressões e as pautas e entender que, capitalismo, racismo, machismo, homofobia e todas as outras opressões, estão intersecionados entre si e atuam em conjunto para explorar e dividir as minorias.

Por fim?

Por fim, o rolê é o seguinte: por um movimento dos trabalhadores contra o(s) governo(s) capitalistas e à favor das mulheres – todas elas – pessoas LGBT, pessoas negras, enfim, todas as minorias. Por um movimento socialista feito por e para os trabalhadores!

Hailey Kaas


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Comentários

Uma resposta para ““Mulheres com Dilma”, o machismo de Lula e os limites das políticas identitárias”

  1. Avatar de José Maria
    José Maria

    A direita é machista, senso comum. Mas a esquerda e o Lula, com tanta propaganda dizendo o contrário ?!
    Entre tantas, numa recente diálogo contido nos grampos Lula convoca: “Cadê as mulher de grelo duro lá do nosso partido?” Não entro no mérito, deixo antes um contraponto – http://justificando.com/2016/03/21/eu-sou-uma-mulher-de-grelo-duro
    Se quem “fala muito dá bom dia pra poste” e o “peixe morre pela boca”, o Lula governo é exposto – o rei está nu – com ele muitos de nós, quando falamos demais.
    A sociedade no geral precisa mesmo de uma sacudida até pra nos tirar da zona de conforto. Unidos vamos construir uma nova sociedade.