Por Daniela Andrade.
Quando o assunto é “crianças e adolescentes trans”, há sempre alguém cisativista ou que compra a narrativa do cisativismo (seja ele radical ou GGGG) para endossar que é um perigo, que estamos propagando cura gay, que estamos hormonizando crianças à força, que é um crime, que a indústria farmacêutica está lucrando, e seguem as picaretagens e a desonestidade.
Da forma como fala parece que estamos bloqueando a torto e a direito puberdades sem nenhum estudo, sem acompanhamento, sem equipe nenhuma.
Parece que a indústria farmacêutica está lucrando milhões transexualizando crianças – o grande detalhe é que nem existe o que se chama hormônios para transexuais, transexuais usam drogas que não foram fabricadas pensando em transexuais.
A testosterona usada pelos homens trans não tem em qualquer lugar da bula falando o que acontecerá sendo usada frequentemente pelos corpos de quem foi nascido e designado mulher.
Os anticoncepcionais e repositores hormonais usados por travestis e mulheres transexuais trazem em suas bulas apenas o que acontece no corpo de mulheres cisgêneras.
A indústria farmacêutica NUNCA se importou para pessoas trans, não é seu público, inclusive por que no Brasil, vejamos, 90% das mulheres transexuais e travestis estão nas pistas se prostituindo, e quem não está se prostituindo está desempregada ou subempregada.
Quanto aos homens trans, uma vez assumidos como homens trans, dificilmente conseguirão algo que não seja subemprego.
Será que estamos aqui falando de um grupo econômico atraente para a indústria farmacêutica?
E se o problema é lucro da indústria farmacêutica, oras bolas, então vamos acabar com todos os anticoncepcionais, com os viagras, vamos acabar com todas as drogas que fazem a indústria farmacêutica lucrar milhões, seria crível?
Pode ser que não seja, mas seria menos hipócrita apontar lucro farmacêutico no caso de pessoas trans e silenciar quando se trata de drogas para pessoas cisgêneras.
E lembrando qualquer droga pode ter efeito colateral danoso em qualquer corpo, independente de ser um corpo trans ou cisgênero.
Sobre bloqueio de puberdade, na realidade o que temos hoje são raríssimos centros médicos para pessoas trans no Brasil, a estupenda maioria vai morrer sem ter direito à uma cirurgia, sem ter acesso a hormônios por não poder pagar, já que só há um ambulatório no Brasil fornecendo hormônios via SUS para pessoas trans.
A depender de onde você nasceu e mora, irá morrer à míngua, a região Norte do Brasil por exemplo não tem NENHUM hospital atendendo pessoas transexuais e travestis em suas especificidades, em toda região Nordeste há apenas um.
Depois, das crianças e adolescentes que terão acesso aos raros centros médicos no Brasil que tratam da transexualidade (só há 5 no país inteiro), que diga-se de passagem precisa ser hospital-escola e sob supervisão de um protocolo de um protocolo médico-ético, elas estão tendo o apoio dos seus pais, estão tendo acompanhamento multidisciplinar por diversos médicos de diversas especialidades, entre os quais psiquiatra e também acompanhamento psicológico e de assistente social.
O bloqueio da puberdade compreende extensivos debates, estudos e que pode ser interrompido a qualquer momento a partir das respostas das crianças e adolescentes. Respostas sociais, psicológicas e clínicas.
Antes de falarmos contra isso, eu aconselho a irmos ouvir essa equipe multidisciplinar que cuida desses e dessas jovens, ouvir os pais dessas crianças e adolescentes e fundamentalmente OUVIR AS PRÓPRIAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES.
Eu sou uma mulher transexual que foi uma criança trans, sim, a transexualidade não apareceu em minha vida por combustão espontânea na vida adulta, ela é reflexo de uma construção social, biológica, psicológica que contempla toda a história da minha vida.
Como tive o azar de nascer na periferia de São Paulo, numa família pobre e iletrada, num lugar e num tempo em que o máximo que se falava sobre o assunto era sobre um mundo dual gays x héteros CISGÊNEROS (ainda que não se falasse sobre cisgeneridade, de fato era essa a única possibilidade), passei uma vida inteira tentando me encaixar nessas duas caixinhas que me diziam ser as únicas possíveis.
Uma vida frequentando espaços GLS (ou LGBT) em que só se falava sobre homossexualidade.
Uma vida apanhando de pai e mãe para me encaixar naquilo que nunca fui.
Sem amigos, incompreendida.
Digo sempre que nunca tive infância, não foi me dado o direito de tê-la. Só conheci violência.
Queria eu ter tido o privilégio de ter pais preocupados, de ter tido atenção multidisciplinar, de ter podido bloquear minha puberdade e ter me hormonizado com acompanhamento médico desde bem cedo.
Com certeza eu teria sofrido bem menos, teria mais qualidade de vida e hoje seria uma pessoa sem tantos traumas que carrego, dos quais nunca conseguirei me livrar, ainda que esteja sob constante acompanhamento psiquiátrico e psicanalítico para ter uma vida quem sabe um pouquinho melhor.
Há quase 10 anos estou numa fila do SUS esperando uma cirurgia – e sou uma privilegiada sendo atendida pelo ÚNICO ambulatório especializado em saúde integral de travestis e transexuais da capital de São Paulo. Uma cidade, não custa lembrar, de 12 milhões de habitantes.
Então quando vejo quem encerra essa questão, crianças e adolescentes trans, sob esse prisma de que se trata de um acinte, um crime contra crianças e adolescentes, eu pergunto: e não seria um crime DETERMINAR que não é possível haver crianças trans? Adolescentes trans? Que a cisgeneridade deveria ser a única possibilidade?
Afinal, se ninguém pode se reivindicar de outro gênero desde bem cedo, por que deveria ser apenas possível reivindicar-se com o gênero que foi IMPOSTO quando nascemos? O problema é com o gênero reivindicado ou o problema é com a transexualidade?
Não é crime legar a essas crianças e adolescentes vidas miseráveis, depressões severas por não ser possível se encaixarem dentro da narrativa que se OBRIGA a eles e elas viverem?
Que tal entrevistarmos adultos transexuais para escutarmos o que essas pessoas tem a dizer sobre suas infâncias e adolescências? Essas pessoas tiveram infância e adolescência, não custa lembrar. Será que todas elas estão super satisfeitas de em sua maioria terem tido que se hormonizar clandestinamente? Sem acompanhamento médico nenhum?
Acredito que mais urgente no Brasil é tratarmos da questão de sermos o país que mais mata travestis e transexuais no mundo.
Do país em que se morre esperando por décadas uma cirurgia num dos únicos 5 hospitais que nos atendem no país inteiro.
De termos arrasadora maioria das pessoas transexuais se hormonizando clandestinamente sem acompanhamento médico, já que são raros os centros de saúde com profissionais especializados em saúde integral de travestis e transexuais.
Isso não incomoda ninguém? Estão preocupados com as pessoas trans, com as crianças e adolescentes que se reivindicam trans ou estão apenas preocupados e preocupadas em perpetuar que o mundo DEVE SER CISGÊNERO?