Narrativa de um sujeito revolucionário nas trincheiras da inteligibilidade

Por Inaê Diana Lieksa.

Há cerca de dois anos cravados, algum sujeito interessado em danar a minha vida, mostrou uma foto minha para aquele sujeito que, em consonância com as identidades que constituem a instituição família, se trataria da “minha” mãe. Esse sujeito que se encarregou de mostrar uma foto minha para a “minha” mãe, não fazia ideia, entretanto, de que o que ele estava fazendo, se tratava do corte do cordão umbilical gerado pela metafísica do parentesco. Daquele momento em diante eu percebi que, aquele sujeito por quem eu guardava uma profunda estima, em nenhum momento performatizou a identidade de “minha” mãe, seja porque em nenhum momento as estimas que carrego se constituem de uma consideração afetiva positiva pelo fato (e isso me soa engraçado, pois esse “fato”, essa “evidência”, não se fez assim para mim em nenhum momento, seja lá de qual “mim” se tratasse) dessa pessoa ser a “minha” mãe, seja porque essa mesma pessoa trata-se da mãe de um sujeito que figura apenas num imaginário cisgênero de existência, ou seja, um corpo cujos desejos já se encontram delimitados e pré-determinados por dispositivos que constituem e regulamentam a cisgeneridade  num processo fordista de arquitetura generificadora dessa máquina denominada ‘’corpo”.

 Nesse momento do meu viver, encontrava-me al ferri corti [1] com esse corpo denominado como sendo masculino. Eu não o concebia como tal. Na época, sequer imaginava do que se tratava a identidade trans, exatamente porque se trata de uma existência que não figura entre as possibilidades. A identidade trans se trata da realização do impossível. Essa realização do impossível, eu considero como um processo revolucionário.

Ao final daquele mesmo dia em que aquela pessoa mostrou a minha foto à minha mãe, as minhas coisas se encontravam na calçada, sem direito algum de me pronunciar. E isso é interessante, pois passei a perceber que reivindicar direitos não me seria suficiente ao longo de minha vida. Eu deveria expropriar cada acontecimento do cárcere das possibilidades, do condicionamento que se apresentava diante de mim. Agir de acordo com as possibilidades já não me seria suficiente, pois a minha própria existência se dá para além das possibilidades. Assim fui diagnosticando os dispositivos utilizados para a captura das identidades trans, e pouco a pouco me tornei uma imigrante nesta sociedade de controle neoliberal. Reconheço que no “começo”, e me refiro ao momento em que me vi desterrada das possibilidades próprias de um cidadão fruto de um projeto de Estado-nação.  

Alguns amigos se afastaram. Poucos se mantiveram. Novos amigos foram surgindo ao longo desse tempo, ou melhor, ao longo de minhas ações. Aprendi a olhar para cada nova pessoa que se dizia “minha” amiga com mais ceticismo. Isso pode soar negativo, ruim, a muitas pessoas. Enganam-se. Nesse processo aprendo a olhar para esses amigos também como inimigos, como aqueles que irão a qualquer momento se opor radicalmente a mim. Isso, por sua vez, não os torna detestáveis, senão que evita de configurarem algo como a Amizade, que se trata da idealização do amigo.

Costumo dizer que ainda carrego afetos positivos por esse sujeito ao qual estive vinculada algum dia pela metafísica do parentesco mãe-filha. Ela teve um filho. Eu, por minha vez, não tive mãe. O amor, o carinho, os cuidados dela, eram direcionados a um sujeito específico que não eu. E como já dito acima, em nenhum momento eu tive. Mas, o que então preservaria esses afetos positivos, já que a metafísica do parentesco já não se mostra nem um pouco suficiente? Talvez tenha sido isso, em nenhum momento a estima que guardei por ela se deu a partir de critérios metafísicos, ou se tratou de algo da ordem do dever. Se eu a amo? Não. O que sinto se trata de estima.


No mesmo período do acontecimento da expulsão, eu também havia “terminado” um relacionamento afetivo de três anos. A guria com quem eu me relacionava, e com quem eu trocava deliciosos carinhos, e por quem eu nutria um sentimento profundo de admiração. O motivo do “término” (uso aspas por não crer no término, no fim. Enquanto houver  algo de memorável, e que seja positivo, ao meu ver, não caberá o termo “término” no jogo) foi o fato de eu assumir a identidade de transmulher. Aos poucos fui percebendo que, o que essa pessoa amava, se tratava de uma representação minha, a qual não poderia sofrer variações de nenhuma ordem, exceto se estas se dessem dentro de um sistema normativo de valoração. Hoje tomo cuidado. Assim como não creio na representatividade, tento ao máximo não me render à representação de um ser amado.

Hoje, dois anos após, olhando para esses acontecimentos, não sei ao certo se conseguiria sentir algum tipo de ódio pelo sujeito que mostrou a foto à “minha” mãe. Penso tanto nesse sujeito, quanto na “minha” mãe que me expulsou de casa, nos meus amigos que pararam de falar comigo, e na guria que “terminou” o relacionamento afetivo comigo por eu ter me assumido trans, e me pergunto: como responsabilizar quem pensa e age em conformidade com a norma? Pois essas pessoas pensaram e agiram em conformidade com a norma. E eu me vejo pensando nisso a todo instante em que ouço “mas você escolheu esse tipo de vida”. Esse enunciado se torna muito emblemático, pois ele diz, no contexto em questão, que, “quem pensa e age em dissonância à norma, torna-se responsável por suas ações”. Oras, se alguém pensa e age em conformidade com a norma, por sua vez, se trataria de um sujeito irresponsável, ou seja, apenas executa ordens.

Percebo o quão coisas como “pátria”, “nacionalidade”, “família”, “amigos”, se tratam de regulações do desejo. Não se pode desejar sexualmente um familiar, ou até mesmo um amigo.

 Penso na realização dos desejos impossíveis, que figurem em nossa imaginação como obras dadaístas, e que nos desfaçam assim como os outros sujeitos nos desfazem a todo instante. Busco uma realização de si inacabável, pois esse “si” trata-se de um desenho que se faz na areia da praia, e logo o mar devora.

 Busco uma realização de si impossível, sem pátria, sem família, sem espiritualidade, sem amigo, e sem amor, acompanhada apenas por estimações, desmantelando as fronteiras entre as coisas que a Ciência torna ídolos a serem respeitados, e criando híbridos, onde não mais se busque traçar os limites de um ser víbora, ser boldo, ou  ser poesia nos corpos.

Eu busco o fim da humanidade [2].

Notas

  1. Expressão italiana que significa “em duelo mortal com”. Costuma ser usada para caracterizar um ponto de não retorno, de ruptura iminente e violenta de uma relação com algo/alguém.
  2. Com “humanidade”, me refiro à categoria biopolítica, a qual abarca tão somente aqueles sujeitos considerados normais.

Imagem: Automat, de Edward Hopper.


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