Por Inaê Diana Ashokasundari Shravya.
O sexismo faz mal a homens também, e não somente a mulheres. Alguém poderia dizer que homens – cis, especificamente – se beneficiariam do sexismo, e portanto não lhes causaria dano algum. Isso é falacioso. Não há uma posição de dominador de um lado, e dominado do outro, rígida, inflexível. Se assim o fosse, talvez nem teríamos a possibilidade de questionar a constituição mesma de nossas subjetividades.
Para que um homem desfrute de privilégio dentro duma sociedade sexista, é preciso que abra mão de determinadas práticas. Do contrário, deixa de usufruir de privilégio. Estamos falando, aqui, das posições que as coisas assumem num determinado contexto, e não duma substancialidade que garantiria privilégios irrestritamente [1]. Neste regime de organização social capitalista no qual vive uma minoria, ao passo que uma maioria sobrevive, há uma educação sentimental que conduzirá as ações dos homens – e essa condução servirá como constituinte de suas subjetividades – articulando diferença e hierarquização sexual, heterossexualidade compulsória, resultando no que se conhece como cisgeneridade, ou seja, a identidade que será caracterizada como cidadão do Estado-Nação.
Nesse processo de educação sentimental, que também tem seus âmbitos formais e informais de ensino, os homens, para se tornarem homens cisgêneros, ou seja, terem suas subjetividades estatizadas, eles precisam aprender a não ter cu. Como nos diz Preciado em seu artigo “Terror Anal” [2], “O cu fechado é o preço que o corpo paga ao regime heterossexual pelo privilégio de sua masculinidade”. Mas isso também é recente, a heterossexualidade data do século XIX. O homem cisgênero heterossexual é um corpo mutilado, castrado, desprovido de cu, cuja sexualidade se centralizará – dado que sincrônica ao Estado – nos genitais. Heterossexualidade e capitalismo não se desassociam. Daí que temos casos como o de Elliot Rodgers, conhecido como sendo o autor do massacre de Isla Vista, California, em 23 de maio de 2014. Antes, ele havia escrito um manifesto [3], onde ele expressa o ódio dele, um ódio decorrente da falta de interesse das mulheres por ele. Na introdução ele diz, por sinal muito interessante, o seguinte: “Esta é a história de como eu, Elliot Rodger, me converti no que sou. Esta é a história de minha vida inteira. É uma história obscura, cheia de tristeza, fúria e ódio. É a história duma guerra contra uma cruel injustiça. Nesta magnífica história, compartilharei todos os detalhes sobre minha vida, cada experiência significativa que logrei pegar de minha memória superior, além de como todas aquelas experiências formaram meus conceitos sobre o mundo”. Percebam, ele tem ciência dos malefícios que envolvem a constituição de sua subjetividade masculina. Mas como ele recebeu uma educação sentimental sexista, o que ele consegue extrair daí, é que a culpa é das mulheres, e não dos homens, já que ele é um. Na real, a culpa não é de um nem do outro, e sim, do sistema que posiciona determinados corpos como sendo “masculinos”, e outros como sendo “femininos”. Elliot Rodger teve um insight, mas a falta de cu o fez cair na própria armadilha do sexismo. Seu relato autobiográfico é repleto de delicadeza em vários pontos. O que me parece é que ele estava experimentando a náusea da perda da masculinidade como um atributo natural. O mal-estar que provém daí encontra espaço no ódio. Sobre o período em que estudou na Dorsett House, uma escola somente para homens, ele diz: “Não gostei de estar na Dorsett House. Me parecia que as regras eram estritas demais ali. Minha parte menos favorita eram os jogos de futebol. Eu nunca entendi o jogo, e nunca podia seguir o ritmo dos outros meninos no campo, daí eu sempre parava perto do goleiro, e pretendia ser o ‘segundo goleiro’”. Esse é um tipo de situação experimentada por muitos meninos na escola, quando não se sentem parte dos grupinhos que se formam. Elliot Rodger serviu de inspiração para muitos incels. Esses são aqueles meninos que sofriam bullying no período escolar, e não meros “meninos brancos mimados”, um reducionismo que não serve pra coisa alguma, senão dar de ombros e evitar investigações, que é exatamente o que não deve ser feito. Esses meninos costumam encontrar espaços de acolhimento em sites como Reddit, 4Chan e outros mais, onde teorias explicativas sobre o motivo de sofrerem bullying são apresentadas. Grupos de Direita cientes disso se aproximarão desses espaços como meio de realizarem propagandas. Na época do Massacre de Realengo, surgiram várias comunidades no Orkut fazendo apologia ao que havia acontecido. Percebam, não estou realizando nenhuma defesa das ações dos incels, e sim, tentando compreender suas ações de maneira crítica. O seu ódio é semelhante ao ódio de Ikki de Fênix, inclusive se compreendermos os incels como os “cavalheiros negros” e a Saori Kido [4] como a figura da mulher que se torna alvo dos incels. Mas lembremos que o ódio de Ikki é resultante do período em que esteve treinando na Ilha da Rainha da Morte, a qual poderíamos associar aos fóruns da internet que acolhem esses homens.
De um tempo para cá, muitos incels têm se dado conta da toxicidade desses fóruns da internet que eles frequentam e têm tentado mudar suas atitudes, como nos diz a matéria de título “Involuntarily celibate men are trying to leave ‘toxic’ online spaces but don’t know how to escape” [Homens Celibatários involuntários estão tentando abandonar espaços onlines ‘tóxicos’ mas não sabem como fugir] [5] publicada no dia 11/09/2019 no site Metro News. Chamá-los de “cabaços”, como têm feito militantes de Esquerda – e incluso militantes feministas, o que é preocupante – não contribui em nada. Muitas das vezes expressa o quão conservadora a Esquerda brasileira ainda é. João Silvério Trevisan chega a dizer que a Esquerda latino-americana “é muito antiquada, bastante medíocre, e cheira a mofo” [6], se referindo à forma como essa mesma Esquerda lidava com “polêmicas” como identidade sexual e identidade de gênero dissidentes. Pessoas como Herbert Daniel, tiveram que lidar com a repressão duplamente: uma que era a Ditadura de 64, e a outra que era o entendimento da homossexualidade como um desvio pequeno-burguês por organizações marxista-leninista, sendo Herbert Daniel um guerrilheiro na época, lutando em grupos como VAR Palmares, POLOP, Colina, e VPR, ao lado de figuras como Carlos Lamarca e Dilma Roussef. O seu nome, entretanto, sequer é mencionado em notas de rodapé que tratam da resistência armada à ditadura de 64 [7]. Despatriarcalizar e descolonizar a Esquerda brasileira ainda é desafio. Do contrário continuaremos ouvindo enunciados que zombam de homens que não possuem uma vida sexual ativa, da homossexualidade de oponentes políticos, de travestis e mulheres cis e trans que recusam o mutismo político, e por aí vai.
Talvez seja o momento de pensarmos espaços de acolhimento também para esses homens e deixarmos de naturalizar suas ações como sendo unicamente suas e não como efeito de um regime de organização social específico. Talvez? É o que precisamos urgentemente fazer!
[1] A afirmação de TERFs (Trans-exclusionary radical feminists / feministas radicais trans-excludentes) de que “a socialização nunca falha” seria, portanto, uma falácia. Se quiséssemos levar a sério a noção mesma de socialização, teríamos que considerar que a sociedade também muda, ainda que não compreendamos as mudanças que ocorrem cotidianamente. A afirmação delas é uma falácia, sim, se o seu discurso for compreendido dentro do método materialista que elas reivindicam, a não ser que as demarquemos devidamente como parte da tradição positivista, e então teríamos um materialismo mecanicista operando. Entretanto, suas afirmações indicam muito mais idealismo, já que as descrições dos acontecimentos existem a priori da realização dos mesmos. Seja um, seja outro, suas conclusões sustentam posições políticas, as quais nutrem o sexismo que alegam combater.
[2] A tradução do “Terror Anal” feita por mim cê pode encontrar pela Imprensa Marginal ( https://www.facebook.com/imprensamarginal/ )
[3] Manifesto de Elliot Rodger [em espanhol]: https://traducciones.inglesk.com/…/mi-retorcido-mundo-ellio…
[4] Ikki de Fênix e Saori Kido são personagens do animê/mangá Cavalheiros do Zodíaco. Para mais informações: https://saintseiya.fandom.com/pt-br/wiki/Ikki_de_Fênix
[5]https://metro.co.uk/…/involuntarily-celibate-men-are-tryin…/
[6] Me refiro à seguinte entrevista concedida ao “História da Ditadura”: https://www.youtube.com/watch?v=Xbwhm9RlMa0
[7] A respeito disso eu aconselho a leitura da tese do Renan Honório Quinalha, chamada “Contra a moral e os bons costumes: A política sexual da ditadura brasileira (1964-1988), disponível em PDF na internet.
A Natalie Wynn, uma mulher trans estadunidense, em seu canal do youtube chamado Contrapoints, chegou a abordar o tema ‘incels’. A quem se interessar, este é o link com a legenda em português: https://www.youtube.com/watch?v=fD2briZ6fB0&t=1392s