Começamos com a blogagem coletiva pela visibilidade trans*! Fiquem atentos para as postagens dos próximos dias.
Resolvi, a partir de vários posts de amigos que vi recentemente pelo facebook, começar meu texto com certas formas – que são linguísticas – que exprimem um discurso que constrói uma decalagem entre a identidade e a realidade baseada na dicotomia corpo-alma. Não se trata de qualquer identidade e qualquer realidade. São as identidades transgêneras frente a uma realidade em que impera a norma cisgênera. Veremos como somos tidas como pessoas menos reais. O discurso tem que funcionar de determinada forma para que isso se efetive. Curioso é notar que tomamos a construção dessas oposições (abaixo) como a mais perfeita ordem natural das coisas. Coloquemos um breve esquema a fim de trazer opacidade ao funcionamento destas formas:
Se sente homem ou mulher / É homem ou mulher
Se identifica como homem ou mulher / É homem ou mulher
Identidade de gênero / Gênero
Identidade de gênero / Sexo
Nome social / Nome
Pronomes de preferência / Pronomes
Gênero / Sexo
Poderíamos notar inúmeras manifestações desse discurso ciscêntrico em diversos textos. O que dizer das propostas de leis que visam à punição às discriminações quando separam discriminações decorrentes do “gênero” das de “identidade de gênero”? O que esta separação significa de fato? Quem sofreria discriminação apenas pelo seu gênero e quem sofria pela sua identidade (de gênero)?
Gênero não é desde sempre identidade; nomes não são desde sempre sociais e sexo e gênero já não são desde sempre a mesma coisa, parafraseando Butler? É só quando nos interrogamos com as perguntas certas que podemos observar criticamente o trabalho da ideologia. Trabalho esse que vai justamente no sentido de fazer tudo parecer natural e evidente quando de fato mostramos que os sentidos que funcionam ali poderiam serem outros. E os sentidos funcionam de determinada forma a deslegitimar o gênero das pessoas trans*. O problema não está nos sentidos de “identificar”; “identidade”; “identificação”, etc, em si mesmos, mas na medida em que a identidade aqui é oposta à realidade, à factualidade. Identidade implicando uma distância, significando a decalagem entre alma e corpo. Nas suas sutilezas, imprimindo o discurso da verdade do sexo. Porém, temos que nós questionar: pessoas trans* são as falsidades do gênero?
Talvez um exemplo mais marcante desse discurso sejam formulações sobre pessoas trans* como “homem/mulher presa/preso em um corpo feminino/masculino” e similares. Esta discursividade funciona na medida em que disjunge o corpo da alma. O imaginário que coloca as identificações transgêneras enquanto enganações também decorre deste funcionamento ideológico. Mais especificamente, são certos corpos que não tem direito a determinadas almas. São corpos e identidades trans* que se encontram em posição anômalas, errantes – como que descoladas da realidade – enquanto as cisgêneras estão ancoradas no discurso da normalidade e verdade. Tudo isso é produto da ideologia.
Tão somente a ideologia determina discursivivamente a posição cis e trans. O lugar de observação disso se dá, por exemplo, no funcionamento das formas linguísticas elencadas acima. Podemos dizer que a ideologia é a argamassa que faz a liga (seja linguística, no caso) entre o corpo e a alma. Liga essa que funciona diferente de cisgêneros para transgêneros. Enquanto na cisgeneridade há uma refração transparente entre corpo e alma, na transgeneridade essa ligação se encontra de forma opaca. Argamassas lisas ou ásperas. O trabalho do transfeminismo é trazer opacidade à cisgeneridade. Tornar opaco é permitir a visão do que antes era transparente (invisível). Não é a primeira vez, aliás, que falo sobre a importância de se falar sobre a cisgeneridade quando queremos visibilizar a transgeneridade. Isto é, ensejar a alteridade. É um processo com suas asperezas, sem dúvida.
Mas percebamos que as oposições que eu fiz acima são de tipo mais sutil. Isso porque não há uma separação estanque entre as formas de funcionamento que, por um lado, estabilizam a cisgeneridade e, do outro, colocam o escrutínio sob a transgeneridade. Mas é justamente na sutileza que a dominação se efetiva. O verbo “identificar” é exemplar neste aspecto. Este verbo não é exacerbadamente marcado com a determinada função de “escamotear o real”. Mas ele funciona assim em determinadas condições de produção. Em última instância, nossos colegas cisgêneros (se forem devidamente interrogados!) de fato irão admitir que seus gêneros sempre foram identificações. A questão é que nem sempre o fazem, e não o fazem exatamente em determinadas situações: na medida em que “sutilmente” se diferenciam do engodo da transgeneridade. É um funcionamento inconsciente. Também é inconsciente – no sentido do fato não chegar à consciência e não ser devidamente simbolizado – a reprodução daquilo que nos torna alijadas e alijados de cidadania básica… nomes, documentos, acesso a saúde, emprego, etc. Sem percebermos desumanizamos as pessoas trans*.
Há algo do impossível inscrito nos nossos corpos e identidades transgêneras. Nós resistimos ao impossível que dita quais vidas seriam inviáveis, inapropriadas e invividas-invivíveis. Ser trans* é se posicionar frente ao impossível enquanto enunciador: quando faltam as palavras que nos seriam necessárias para nossa sobrevivência; quando nós somos interpeladas e interpelados a dizer a verdade da nossa “identidade de gênero” e nos esbarramos tão somente com um furo simbólico. O não dizível sobre o gênero se torna o seu ponto de incompreensão, um sem sentido absoluto angustiante. Impossível de dizer pois não há o que dizer, e não haveria realmente porque dizer.
Mas sobrevivemos com remendos de significação, já que a vida é para agora. Fazemos o possível para nos fazermos entender. Passamos por inúmeras instâncias da gestão social destes sentidos: juízes, médicos, assistentes sociais, advogados, psicólogos. Instituições que são ainda calcadas pelo prisma da cisgeneridade enquanto norma. Sobrevivemos num puxadinho possível da laje da significação. Mas é de puxadinho em puxadinho que podemos talvez almejar a revolução.
Espero que essas injunções a dizer fiquem menos sofríveis para nós, a partir do momento em que passamos a ver/ouvir (com todas as consequências desse ato) o significante cisgênero. Ficaremos mais abertas e abertos à possibilidade da polissemia, do não-sentido e não-todo do gênero. Tomemos assim um fôlego de significação. Desta forma podemos repensar um mundo em que nossas almas não estejam radicalmente separadas dos nossos corpos. O que significa interrogar (no sentido de desconstruir) o caráter inefável da alma e o empírico do corpo. Não existe alma sem corpo, e o corpo não preexiste à inscrição simbólica. Afinal: todos nós, não somos o que somos, simplesmente?