1 – Os donos da boutique queer
De nada adianta analogias vazias de que “a Palestina é a travesti do mundo” quando no próprio Brasil as principais organizações dessas mesmas travestis não são ouvidas pela academia.
Há aproximadamente 10 anos, a discussão sobre transfeminismo e o conceito de cisgeneridade foi trazida com maior tração ao meio ativista/acadêmico no Brasil – principalmente das Ciências Sociais – por meio do site/blogue Transfeminismo. Contudo, não tratava-se de uma discussão nova, tampouco recente: no norte global, as produções intelectuais sobre transfeminismo e sobre o conceito de cisgeneridade já floresciam há pelo menos 10 anos, considerando que um dos mais famosos textos sobre o tema, o “Manifesto Transfeminista” de Emi Koyama, data de 2001. Há, portanto, extenso material produzido pelas pessoas trans euroestadunidenses – em que pese as questões que possam ser levantadas sobre o colonialismo presente ao sempre nos espelharmos nas produções do norte global para as produções do sul global.
O pensamento trans – acadêmico ou não – não é uma novidade. Mas, no Brasil, a teoria queer chegou via e se estabeleceu em um lugar de poder extremamente branco, cis, elitizado e academicista, tendo sido transformada em um conhecimento para poucos iniciados. Uma boutique queer cujos acessos são autorizados somente a alguns (o contrário do que se pretendia enquanto projeto crítico revolucionário, vale lembrar). Nesse processo, os saberes sobre gênero e sexualidade se concentraram/concentram nas mãos de poucas pessoas, em sua maioria cis e brancas, que assumem estatuto de autoridade e determinam quem pode falar e quais são os conceitos e teorias válidas e passíveis de serem discutidos.
Esse modelo não é uma novidade dentro das políticas de opressão: ele somente reproduz a lógica capitalista e extrativista de produção de conhecimento na academia. Em termos coloquiais, o famoso “farinha pouca meu pirão primeiro” versão gravata borboleta: um ideal protecionista individualista de produção acadêmica. O “campo”, então, se torna útil à medida que o pesquisador cis sonha com os prêmios e elogios tecidos a sua tese (e, consequentemente, com a conquista do diploma). As entrevistas são valiosas na mesma medida em que ele pode transformá-las em commodities, em vivências-produtos que serão consumidas e agregarão valor ao capital social de seu lattes. Neste texto, estou me referindo especificamente às travestis como campo, mas eu poderia estar falando perfeitamente de qualquer outro grupo minoritário vítima desse sistema extrativista de produção de conhecimento que, ao mesmo tempo que constrói conhecimento por um lado, promove o epistemicídio por outro. Porque a epistemologia só tem valor se quem a enuncia, se quem a evoca possui o poder de evocá-la. Caso contrário ela se torna estéril, fruto de um grupo de pessoas agressivas, ressentidas e antidemocráticas – que se assemelham à ditadura, como disse um famoso professor.
Quem pode construir o conhecimento também tem a prerrogativa de controlar sua narrativa e determinar o que pode ser dito sobre ele. O critério para definir aquelas pessoas que são “democráticas” e as que são “antidemocráticas” se apresenta quando as políticas de respeitabilidade assumem a moral do debate. E professories com seus respectivos guardanapos de pano no colo podem escrever os textos mais violentos possíveis amparados por sintaxes e palavras academicamente polidas e aceitas, enquanto desqualificam as formas de resistências históricas de grupos oprimidos por supostamente não dominarem os termos do debate. Termos que foram, justamente, estabelecidos de antemão por essas mesmas pessoas com o intuito de deixar toda uma categoria de pessoas de fora. Em outras palavras, a boutique queer cria os termos do debate, estabelece suas regras, quem pode participar dele e como, ao mesmo tempo que critica as travestis por não dominarem essas regras. Por isso, podem cobrar “artigos densos” como chave de acesso ao debate “democrático”, em que pese tal produção de “artigos densos” já existir há décadas no norte global, como mencionado anteriormente. A questão, aqui, obviamente, não é a existência ou não de tais artigos, porquanto teriam sido igualmente desqualificados pela transfobia de luxo da boutique.
A algumas travestis, àquelas que essas pessoas provavelmente elogiariam o uso correto do garfo e da faca, é suportada a coexistência nos mesmos ambientes acadêmicos – desde que, obviamente, permanecesse intocado o local de privilégio e prestígio acadêmicos dos donos da boutique. Afinal, é preciso fingir, até certo ponto, que todes têm lugar à mesa e que todes estão em par de igualdade.Basta, claro, você se esforçar e mostrar-se “brilhante”, usando es autories “certos” para isso, sem dúvida.
O problema surge, todavia, quando o “campo” em sua maioria começa a repensar e não deseja mais ocupar esse lugar, ousando ensaiar uma tentativa de determinar os termos do lugar no qual o debate ocorrerá. Começam a desejar subverter a posição de poder da pessoa pesquisadora, tomando para si a tarefa de falar sobre si e sobre suas subjetividades – mostrando que também sabem ler, interpretar e apreender as teorias e que, vejam só, não precisam da validação desses sujeitos e tampouco da academia. Com efeito, o pânico se instala aos acionistas da boutique, ao perceber que o controle está sendo perdido, que aqueles que determinam quem pode falar não mais conseguem exercer por completo essa prerrogativa. Seus poderes são limitados, suas opiniões não mais requeridas.
De repente, num seminário importante com apoio do SESC, uma travesti sem titulação (!) ousa nomear e alocar um professor famoso por colocações transfóbicas em seu devido lugar: o da não compatibilidade com o pensamento transfeminista atual. O acionista majoritário da boutique vem abaixo, mas, cinicamente, não se pronuncia. Esperto como é, incita seus aliados (em sua maioria mulheres, vale ressaltar) a falarem por ele, pois é incapaz ou, talvez, ache que esteja abaixo dele, de enfrentar os argumentos ali colocados. Não consegue travar um diálogo transparente, porque nunca fora transparente: seu objetivo sempre foi e sempre será o de se manter no poder. A síndrome do pequeno poder acadêmico ofusca qualquer tentativa honesta de diálogo. Os gritos de “censura” ecoam até à direita, com figuras como Madeleine Lackso e a Gazeta do Povo entrando na disputa narrativa do que chamaram de “ataque à liberdade de cátedra” (a esse uso perverso de “liberdade de cátedra” não vou me manifestar, pois outras pessoas já o fizeram muito melhor que eu).
Com efeito, neste caso como em outros, inverte-se facilmente vítima e vitimado. Num clássico do colonialismo, os colonos se colocam como as “verdadeiras” vítimas de um processo violento de colonização. São eles que estão sendo silenciados, muito embora continuem curiosamente escrevendo, produzindo e dando aula. Mas as críticas não resistem a uma análise lógica simples: qual poder as travestis têm socialmente e estruturalmente para ameaçar a posição de qualquer um na academia, especialmente a de um homem cis e branco? Enquanto o despeito vem via textos acríticos (de entidades de classe e das amizades) e , o Brasil continua matando desproporcionalmente travestis negras e o trabalho sexual continua sendo o plano A, B e C de 9 entre 10 travestis. Se um grupo de travestis ousa enfrentar o corporativismo acadêmico, talvez fosse interessante lembrar que o fazem em meio a ameaças de despejos e cobranças de água e de luz. A “ditadura” travesti passa fome. A desproporcionalidade é tão gritante e óbvia que, sinceramente, me sinto ridícula de estar escrevendo isso em 2023, mas, aparentemente, ainda se faz necessário.
2 – FORTALEÇA OS CENTROS DE PESQUISA INDEPENDENTES
Dito isso, dado o aparente mal-estar que a nota de “persona non grata” causou tirando muitas pessoas do armário transaliado, o momento é propício para fortalecermos uma rede/observatório que promova não só as produções trans, mas também a independência de pensamento e de produção do conhecimento baseado em evidências. O Centro de Pesquisa Transfeminista (CPT) nasceu há um ano com esse propósito: estimular a produção de conhecimento trans+feminista que esteja organizada por fora dos marcos do corporativismo acadêmico. Um espaço de combate à colonização do conhecimento via extrativismo e turismo epistemológico travesti. Certamente, vivemos todos sob o capitalismo, mas acreditamos que uma postura transparente é essencial para um projeto decolonial e anticapitalista de produção do conhecimento. Se o capitalismo nos é, no momento, aparentemente, inescapável, façamos com que as relações que ele produz estejam completamente desnudas. Obviamente, não somos ingênuas em pensar que podemos simplesmente ignorar a academia e nem é isso que defendemos. Não podemos jogar fora a água do banho com o bebê. Afinal, a produção acadêmica sobre gênero e sexualidade dentro de grupos como o PAGU, por exemplo, foi e é de extrema importância, a despeito da sua recente posição institucional antitrans. Contudo, ao criarmos um espaço independente desses grupos que estão subordinados às suas burocracias acadêmicas, procuramos mostrar que é possível, ainda que seja muito mais difícil, trabalhar fora dos marcos do capitalismo acadêmico e hegemônico. Isso também significa criar um espaço onde as pessoas trans sejam devidamente remuneradas pelo seu trabalho. O fortalecimento econômico da população trans é imperativo para nós nesse projeto.
Por isso, é importante que o CPT possa ser financiado por todes – desde pessoas físicas, até dinheiro público e privado (contanto que este não interfira na autonomia do centro). Em breve lançaremos um novo site e financiamento recorrente, mas você pode desde já seguir nosso Instagram: centrodepesquisat. Lá, atualizaremos vocês sobre nosso projeto para o primeiro semestre de 2024: mapear os estudos trans brasileiros. Enquanto isso, se quiser nos apoiar para a manutenção do site e das redes sociais, mande um pix com qualquer valor para cp@transfeminismo.org (em nome de Hailey Kaas).
Desde já agradecemos, pois sairemos vitorioses desse processo sabendo que juntes somos mais fortes!
Hailey Kaas, diretora do Centro de Pesquisa Transfeminista