O avanço das demais lutas minoritárias poderia se antagonizar com o feminismo? Reflexões históricas sobre questões raciais

Texto de Leonarda Lisboa.

No comecinho do século XIX, nos Estados Unidos, mulheres brancas, principalmente de classe média, se organizaram politicamente para lutar contra a escravidão, numa época em que ainda eram poucos e difusos os debates sobre a emancipação feminina e o sufrágio.

Juntamente com algumas pautas dos próprios direitos das mulheres, iniciaram-se convenções com caráter anti-escravatura, onde eram debatidos os ultrajes e horrores da escravidão, em contraposição a constituição americana e os princípios dos direitos humanos.

Algumas dessas mulheres abolicionistas construíam discursos que relacionavam a importância do combate a exploração de raça, de gênero e de classe, apontando uma profunda consciência da inseparabilidade da luta da libertação dos negros e da luta contra opressão sexista das mulheres.

Poucas décadas depois, com a abolição da escravidão nos EUA, várias sufragistas que haviam participado de grupos abolicionistas se colocam contra o voto do homem negro e a favor da supressão e retardamento dos direitos das pessoas negras, chegando a elogiar a apoiar supremacistas brancos e conservadores pró-escravatura, contanto que estes se colocassem a favor dos direitos das mulheres e contra os dos negros.

As justificativas que usavam eram que as mulheres (brancas, é claro!) deveriam apenas concentrar os esforços nas pautas de seus próprios direitos – não sendo-lhes obrigação lutar pelos direitos de mais ninguém – já que o povo negro já tinha os abolicionistas para lutarem por eles, também diziam que o direito ao sufrágio para o homem negro lhe colocaria em superioridade sobre as mulheres por conta dos ‘privilégios masculinos (ignorando a opressão econômica e o racismo), que os direitos do povo negro caminhavam mais rápido que os direitos das mulheres precisando ser freados e impedidos, e que apenas quando a mulher fosse totalmente emancipada, seria ai o momento do debate dos direitos dos negros e que neste momento as mulheres poderiam apoia-lo.

Enquanto ambos os grupos pediam o voto para completar a sua igualdade na sociedade, uma perspectiva racista, elitista e egoísta as fazia ver os direitos de outra minoria como rivais dos seus próprios, ignorando a precariedade absoluta das pessoas negras recentemente “libertadas”, a ideia da convivência e dos avanços lhes soava ameaçadora, cegas ou insensíveis para o fato de que as pessoas negras continuavam a sofrer privação econômica muito mais acentuada e tinham de confrontar a violência e terror racistas no dia-a-dia de forma tão explícita quanto na época da escravidão.
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O tempo passa e vemos os mesmos discursos e as mesmas práticas ainda vivos, a ideia de que é possível um feminismo que lute pelo fim da opressão de gênero apenas – ignorando todos demais tipos de opressão e exploração econômica como sendo secundários, antagonizando os direitos de outros grupos minoritários como ameaças ao próprio avanço, acreditando em privilégios masculinos absolutos, fazendo alianças com conservadores e reacionários para barrar direitos e fechando os olhos para a precariedade e violência alarmantes que cercam a existência de parcelas inteiras da população.

Quem tiver interesse em ler mais sobre o assunto, eu recomendo o livro “Mulheres, Raça e Classe” da Angela Davis.

Imagem: Angela Davis.


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